OS CEM ANOS DE PATATIVA DO ASSARÉ
O poeta que cantou o sertão e defendeu os pobres
Wilson Ibiapina*
“ Não nego meu sangue,
Não nego meu nome
Olho para a fome,
Pergunto o que há?
Eu sou brasileiro,
Filho do nordeste,
Sou cabra da peste,
Sou do Ceará”
(Patativa)
O centenário do poeta Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do
Assaré, foi celebrado pelo Senado Federal que promoveu uma série de
eventos que ocuparam toda a tarde e começo da noite do dia 3 de junho
passado. A programação começou às 14hs, no plenário quando os
senadores de todas as regiões se revezaram na tribuna homenageando o
poeta nordestino. A homenagem foi proposta pelo senador Inácio Arruda,
do PCdoB do Ceará. Teve a exibição de um documentário do cineasta
Rosenberg Cariry, sobre a vida do poeta e o lançamento do livro
“Patativa do Assaré – Poeta Universal. Antecedendo a exibição do
filme, os violeiros Roque José e Lindalva Dantas embolaram o côco..
Raimundo Fagner estava entre os convidados.
Conheci Patativa do Assaré debaixo de um pé de jacarandá,bebendo
vinho Velho Capitão ( o nome era uma homenagem ao fundador dos Diários
Associados, Assis Chateaubriand). Naquele começo de noite de um ano
da década de 60, em pleno regime militar, estava com o jornalista
Narcélio Limaverde. Eramos convidados do jornalista Teixeira Cruz,
para o sarau no quintal da casa do professor Filgueiras Sampaio,
dono do Instituto Waldemar Falcão e presidente da Associação Cearense
de Folclore . O Teixeira Cruz era vice presidente e também o
assessor de imprensa
Depois da exibição de alguns repentistas, o professor Filgueiras vai
lá dentro de casa e volta com um homem de uns 50 anos de idade,
franzino, óculos com uma lente clara e outra escura, chapéu de palha
na cabeça.. Foi aí que tive o
privilegio de conhecer o poeta que o sertão cearense já consagrava mas
que o Brasil ainda não sabia quem era.. O padre Antônio Vieira, que
foi deputado federal e escreveu muitos livros defendendo o “jumento
nosso irmão”, disse um dia que a poesia do Patativa é “como as veredas
e picadas do sertão. Tem rastro de gente, de gado, de bode, de preá,
de tatu, só não tem pegadas de caipora, duendes, almas penadas, coisas
do outro mundo. Sua poesia é de um realismo cruciante. Não tem
metáfora, erudição livresca. Suas imagens são naturais, colhidas da
terra como o milho, o feijão e batata por ele plantada em seus
roçados”
Eu e o Narcélio estavamos com um gravador tamanho gigante que
pertencia à Ceará Rádio Clube, emissora em que trabalhavamos.
Precisava de duas pessoas para carregá-lo. Era o que existia na época.
Depois de puxar fio praqui pracolá, conseguimos ligar a possante
máquina. Patativa, tirou o cigarro de palha da boca, deu um gole no
copo de vinho, servido na temperatura ambiente, quer dizer super
quente, pegou o microfone e mandou: “ Gravador que estás gravando/
Aqui neste ambiente/ Tu gravas a minha voz/ O meu verso, o meu
repente,/ Mas gravador, tu não gravas/
A dor que meu peito sente.”
Tenho a impressão que o verso era antigo e ele aproveitou a ocasião
para declamá-lo. Mas muitos dos que estavam presentes ainda hoje
acreditam que ele improvisou.
A vida de Antônio Gonçalves da Silva não difere muito de outros
meninos pobres do sertão.
Nasceu no dia 5 de março de 1909 em Assaré, no cariri cearense. Ainda
menino começou a trabalhar na roça com o pai e os irmãos. Em 1913
perdeu um olho por causa de uma inflamação. O escritor e cineasta
Rosemberg Cariry lembra, que anos depois, ele foi chamado de “O Camões do
Sertão” por causa da tragédia que lhe marcou pelo resto da vida.
Razão do óculos com lentes clara e escura.
O pequeno Antônio Gonçalves não ficou nem seis meses na escola. Com a
morte do pai, que também era poeta, piorou a situação de pobreza da
família. Era de pouco estudo, mas de muita leitura. Sua inteligencia
privilegiada o levou a conhecer autores clássicos como Camões, Bocage,
Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Antero
de Quental e Guerra Junqueira. Sempre se considerando um Poeta da
Roça: “
“Sou fio das mata, cantô da mão grossa/ Trabáio na roça, de inverno e
de estio? A minha chupana é tapada de barro/ Só fumo cigarro de páia
de mio/
Sou poeta das brenhas, não faço o papé/ De argum menestré, ou errante
cantô/ Que veve vagando, com sua viola/ Cantando, pachola, à percura
de amô/ Não tenho sabença, pois nunca estudei/ Apenas eu sei meu nome
assiná/ Meu pai, coitadinho, vivia sem cobre/ E o fio do pobre não
pode estudá.”
Em 1928, escapulindo da miséria provocada pela seca, seguiu o
exempl,o dos cearenses daquele tempo. Foi se alistar no “exercito da
borracha”, em plena selva amazônica. Como seus conterrâneos
retirantes, sem destino, entrou na mata subiu rios e foi bater no
Pará. Foi em Belém que o escritor Carvalho de Brito, depois de ouví-lo
resolveu batizá-lo de Patativa. Como no Nordeste todo bom cantador ou
repentista é chamado de Patativa acrescentou o nome de sua terra
Assaré para diferenciá-lo dos outros.
Nos anos 30, já de volta ao Ceará, acompanhou com interesse toda a
movimentação social que promoveu mudanças políticas no país. Segundo
Rosemberg Cariry foi quando ele adquiriu uma consciência política e
começou a ser influenciado pelas idéias sociais. É dessa época a
“Triste Partida” Na seca de 1932 viu muitas famílias partindo para São
Paulo, fugindo da fome, das doenças e da morte. O poema de 19 estrofes
e 114 versos heptassílabos, que ele musicou, narra a saga de uma família de
nordestinos, rumo a São Paulo, deixando tudo para trás mas levando a
esperança de um dia voltar. A “Triste Partida” foi gravada pelo próprio
Patativa e também por Luiz Gonzaga, Fagner e outros artistas que a
imortalizaram.
A preocupação de Patativa com o social e a política está presente em
seus versos, onde defende o mais pobre e fala pelo sertanejo sofrido:
“O que mais dói não é sofrer saudade/ Do amor querido que se encontre
ausente/Nem a lembrança que o coração sente/Dos belos sonhos da
primeira idade/
Não é também a dura crueldade/ Do falso amigo, quando engana a gente/
Nem os martírios de uma dor latente/Quando a moléstia o nosso corpo
invade/
O que mais dói e o peito nos oprime/E nos revolta mais que o próprio
crime/Não é perder da posição um grau/
É ver votos de um país inteiro/Desde o praciano ao camponês
roceiro/Pra eleger um presidente mau”
Em 1943, Patativa fez uns versos criticando o prefeito da terra dele.
O poema “Prefeitura sem Prefeito” irritou profundamento o
administrador da cidade que mandou prende-lo. Na cadeia viu uma gaiola
com uma Patativa presa, mas cantando. E ele fez o verso na hora:
“Linda avezinha pequena/ Temos o mesmo desgosto/ Sofremos a mesma
pena/ Embora em sentido oposto/ Meu sofrer e teu penar/ Clamam a
Divina lei/ Tu presa para cantar/ E eu preso porque cantei.”
A poesia de Patativa brotava feito água limpa de fonte:
“Meus versos é como semente/ Que nasce arriba do chão/ Não estudo nem
arte/ A minha rima faz parte/ Das obras da criação.”
O poeta Antônio Gonçalves começou a ser conhecido como Patativa do
Assaré no ano de 1954. O primeiro livro dele foi editado em 1956. Luiz
Gonzaga gravou Triste Partida, pela primeira em 1964. a gravação tem 8
minutos e 54 segundos .A obra de Patativa foi levada para Paris em
1977 por Raymond Cantel para ser estudada na cadeira de cultura
popular da Universidade da Sorbone.
Em 1970 saiu o livro “Cante lá que eu canto cá “, título também de um
de seus famosos poemas: “Poeta, cantô de rua/ Que na cidade nasceu/
Cante a cidade que é sua/Que canto o sertão que é meu”. . Depois de
estabelecer as diferenças cultarais e de vida entre os poetas da
cidade e o matuto, ele encerra assim:: “Sua vida é divirtida/ E a
minha é grande pená/ Só numa parte da vida/ Nóis dois samo bem iguá:/
É no direito sagrado/ Por Jesus abençoado/ Pra consolá nosso pranto/
Conheço e não me confundo/ Da coisa mió do mundo/ Nóis goza do mesmo
tanto/
Eu não posso lhe invejá/ Nem você invejá eu/ O que Deus lhe deu por
lá/ Aqui Deus também me deu/ Pois minha boa muié/ Me estima com muita
fé/ Me abraça, beija e qué bem/ E ninguém pode negá/ Que das coisa
naturá/ Tem ela o que a sua tem.”: Em1979 Fagner
produziu o primeiro Long play com Patatiba recitando seus poemas. Em
1985 o poema Seca D'água é musicado por Chico Buarque e cantado por
vários artistas. A renda do disco vai para os flagelados da seca no
Nordeste. Centenas de livros, filmes, documentários e folhetos de
cordel continuam sendo produzidos e espalhando por aí a vida e a obra
desse poeta que chegou a ser chamado de Victor Hugo do Nordeste
popular.
Na sessão especial do Senado, pelos cem anos de Patativa do Assaré o
momento de emoção foi quando Raimundo Fagner subiu à tribuna. No lugar
de discurso cantou Boi Fubá: “Seu doutô, me dê licença/ Da minha
história contar/ Hoje estou em terra estranha/ E é bem triste o meu
penar/ Eu já fui muito feliz/ Vivendo no meu lugar/ Eu tinha cavalo
bom/ Gostava de campear/ Todo dia eu aboiava/ Na porteira do currar/
Ee4e vaca Estrela/ O
Ôoooo, boi fubá”.
Geraldo Gonçalves de Castro, um dos 14 filhos do Patativa esteve
presente. Viu o senador Inácio Arruda afirmar que “reverenciar a
memória de Patativa do Assaré significa preservar o alcance universal
da obra deste cearense que sempre teve em sua terra natal sua fonte
de inspiração. Poucas vezes a frase do escritor russo Tolstoi “Se
queres ser universal, fala da tua aldeia” foi tão bem representada e
mais que isto, tão esplendidamente vivida quanto em Patativa do
Assaré”.
No livro que foi lançado no Senado, por ocasião dessa homenagem, o
professor Tadeu Feitosa diz que a sabedoria dos poemas de Patativa é
grande, muito mais do que
erudita e popular. É um saber outro que não se rende aos paradigmas e
cânones hegemônicos. Que não se curva aos modelos da literatura ou da
poesia dos grandes.
Esse belo e bruto diamante da poesia nordestina, como o chamou o
cantor e compositor Zé Ramalho, morreu em 2002 de pneumonia dupla e
falência multipla dos órgãos. Foi na manhã do dia 8 de julho. Há sete
anos: “Conheço que estou no fim/ Sei que a terra me come/ Mas fica
vivo o meu nome/ Para os que gostam de mim.”
* Wilson Ibiapina, jornalista
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