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Conversando sobre adoção com Promotores e Juízes, chegamos à 2a Vara da Infância e da Juventude da Justiça do Ceará, no Fórum Clóvis Beviláqua, onde a Promotora Marília Uchôa, extremamente zelosa de seu mister, cuida de assuntos assim. Marília Uchôa, de uma família de estreitas ligações com a Justiça, começa uma conversa dura sobre a Lei da Adoção e as Leis que regem o seu trabalho. De pronto anuncia: Não existe vencedor nem perdedor num processo de adoção. O que tem que ser visto é, exclusivamente o interesse da criança. Por sinal, destaca ela, a Lei 12.010/09 diz que “...visa à proteção integral da criança e do adolescente”. Integral, grifa com gravidade a Promotora de Justiça.
[O ESTADO] As famílias biológicas abandonam suas crianças e estas são encaminhadas pelo Juizado da Infância e Juventude à Unidade de Acolhimento (abrigo)?
[MARÍLIA UCHÔA] Esta não é uma situação real, faz parte, apenas, do imaginário popular. Nem sempre uma criança é acolhida pelo Estado porque foi, simplesmente, abandonada pela família biológica. Muitas vezes faltam-lhes as mínimas condições de dignidade e sobrevivência e elas preferem que as crianças não participem daqueles momentos de extrema dificuldade familiar e, assim, entregam-nas aos cuidados das instituições acolhedoras. É muito fácil julgar como simples abandono quando estamos no calor do nosso lar e cercados pela segurança dos nossos bens. Para que você tenha uma ideia, o índice de crianças acolhidas e que retornam ao convívio familiar após a intervenção de programas sociais na família, é bastante relevante em comparação às crianças que permanecem nas casas de acolhimento. Devemos lembrar, ainda, que a adoção é uma exceção e que na aplicação das medidas de proteção à criança e ao adolescente, devem-se preferir sempre aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Portanto, é dever do Estado, quando possível, procurar fortalecer tais vínculos.
[O E.] O Ministério Público conhece a situação de cada criança abrigada? Por que estas crianças não voltam ao seio de sua família ou são adotadas?
[M.U.] Toda criança e adolescente que se encontre em situação de acolhimento, ou seja, no “abrigo”, é acompanhado por duas Promotoras de Justiça que atuam junto à 3a e 4a Promotorias de Justiça da Infância e Juventude de Fortaleza. Essas Promotoras acompanham o desempenho da família natural junto aos filhos nas casas de acolhimento e se essas famílias não demonstrarem nenhuma capacidade de recuperação por falta de zelo ou de responsabilidade para com a sua prole, poderá perder o poder familiar. A Lei determina, que a convivência familiar seja tentada. A Lei manda cobrar de pais e mães, as responsabilidades com a criação dos filhos que puseram no mundo. Mas as leis não conseguem impedi-los de traficarem, matarem, drogarem-se. E quando as crianças são acolhidas nos abrigos, eles vão e vêm, prometendo sua própria recuperação para a guarda dos filhos. Até que um dia, somem de vez. De qualquer maneira, ainda há que se buscar a família extensa e, somente em último caso, serão encaminhadas para a adoção. O Ministério Público dispõe de duas Promotoras de Justiça apenas para atuar junto aos procedimentos das crianças acolhidas e uma Promotora para atuar junto ao Cadastro Nacional de Adoção.
[O E.] Por que as crianças estão crescendo nos abrigos?
[M.U.] A resposta para este questionamento é muito precisa e se divide em duas frentes que precisamos encarar com bastante seriedade. A primeira delas passa pela sociedade. No último estudo acerca dos pretendentes à adoção, inscritos no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), ficou comprovado que mais de 70% dos pretendentes habilitados querem uma criança branca, com menos de dois anos de idade e totalmente saudável, ou seja, sem ter sequer uma doença tratável. Ora, levando-se em consideração que vivemos num país de miscigenação de raças, a criança “branca” já diminui consideravelmente a chance de êxito do pretendente à adoção em tempo satisfatório para ele. Enquanto isso, inúmeras outras crianças, pelo simples fato de serem pardas, negras ou amarelas vão crescendo nos “abrigos”. A criança totalmente saudável é difícil até mesmo em nossos lares estáveis emocionalmente, providos de todo o apoio emocional que pode dar um pai e uma mãe, avós e tios. Ou será que dentro de nossos lares não existe mais nenhuma criança com asma? Ou renite alérgica? Mas aquele casal, que exclui uma criança com doença tratável, está dizendo NÃO para aquele que tem renite, asma e outros problemas oportunistas que só se apresentam devido à instabilidade emocional causada pela ausência do amor materno e paterno. E o que dizer das crianças de cinco anos? De quatro anos de idade? De seis anos? Elas são rejeitadas pelos casais nacionais, pois são consideradas velhas, cheias de vícios. E se tiverem irmãos, precisarão de verdadeiros heróis para resgatá-las da situação de acolhimento institucional, ou seja, do “abrigo”, para que possam um dia vivenciar aquilo que seja o verdadeiro amor paterno-materno-filial.
Bem, mas este é apenas o primeiro lado da moeda. Hoje, vivenciamos uma situação de crise de parte da nossa juventude, que está entregue à delinquência, ora influenciada pelas drogas, ora apanhada por uma inversão de valores. A 2a Vara da Infância e Juventude de Fortaleza, por exemplo, faz uma média de sete a oito audiências diárias de processos de adolescentes envolvidos com atos infracionais análogos a crimes quase sempre graves. O prazo para o término destes procedimentos é apenas de 45 dias e o número de Varas da Infância e Juventude para processar e julgar estes adolescentes, são apenas quatro Varas na Capital, se tornou insuficiente para atender à demanda destes atos de natureza infracional e, ao mesmo tempo, processar e julgar as adoções e as destituições do poder familiar dentro do seu prazo regular. As destituições devem ocorrer no prazo de 120 dias.
Portanto, se de um lado a sociedade não se despe de seus preconceitos contra a adoção tardia e multirracial, por outro lado, as Varas da Infância e Juventude em Fortaleza não são mais suficientes para atender à demanda de processos de natureza cível e infracional, causando demora no julgamento das ações de destituição do poder familiar e mesmo de adoção.
[O E.] A nova Lei de Adoção estabelece o acolhimento de no máximo dois anos e a Destituição do Poder Familiar em 120 dias. O não cumprimento dos prazos estabelecidos pela Lei faz com que a criança saia do perfil desejado pelo pretendente à adoção?
[M.U.] Em relação ao prazo de acolhimento, em contato com algumas assistentes sociais, tenho percebido uma preocupação imensa em procurar familiares, que possam receber adolescentes e grupos de irmãos que não tenham sido adotados, mesmo após a destituição do poder familiar, sob a forma de nova tentativa de recuperação de laços e vínculos familiares. Mesmo mães que se encontravam perdidas há mais de oito anos foram localizadas e estão em processo de vinculação com os filhos já adolescentes para que possam reconstituir o poder familiar, judicialmente, e ter seus filhos de volta. É como um milagre. Tudo está sendo feito para que este prazo seja cumprido. No tocante às ações de destituição do poder familiar, as Varas da Infância e Juventude encontram este obstáculo: ou processam o ato infracional dentro do prazo de 45 dias ou a destituição do poder familiar dentro do prazo de 120 dias.
[O E.] São quatros Varas da Infância e Juventude. O número de profissionais é suficiente para atender à demanda do Juizado?
[M.U.] Nem mesmo o número de Varas é suficiente e só não há um número maior de processos que se encontram nas Varas Criminais ou nas Varas Cíveis, graças aos esforços dos Juízes, Promotores e Defensores em promover tantas audiências diárias, cinco vezes por semana. Faltam aos servidores cursos de humanização, capacitação sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, sobre a Nova Lei de Convivência Familiar, que é a Lei no 12.010/09, e, especialmente, falta investimento na Equipe Interdisciplinar do Juizado da Infância e Juventude. Aí, sim, falta recurso humano, muitas vezes falta respeito, falta apoio, falta reconhecimento no trabalho que é o coração da Infância e Juventude. Sem o trabalho desta Equipe, pouco ou nada funciona nos processos de adoção, nos procedimentos de Cadastro, no procedimento de manutenção de vínculo. Esta equipe é o olho e o ouvido do Juiz da Infância e Juventude, portanto, merece respeito e, essencialmente, muito investimento.
[O E.] Por que no Juizado da Juventude não há uniformidade nos procedimentos? Exemplo: a decisão sobre a guarda da criança abrigada com relação à família ampliada, é de competência do Juizado da Juventude ou da Vara de Família?
[M.U.] A disparidade de decisão só existe por falta de conhecimento da Lei. Tratando-se de criança ou adolescente que tenha seu direito reconhecido na Lei no 8.069/90 violado ou ameaçado por falta ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta ou omissão ou abuso dos pais, ou, ainda, em razão de sua conduta, e estando nas hipóteses do art. 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente, será da competência da Infância e Juventude. É só uma questão de ler a Lei.
[O E.] O vínculo afetivo entre a criança e a família que pretende adotá-la ainda é levado em consideração, por causa do interesse da criança, ou a Justiça só considera a lista do Cadastro Nacional de Adoção? No Brasil, alguns juízes e promotores interpretam o Cadastro como uma sugestão prioritária, salvo os casos de maior interesse das crianças. É necessário que o Cadastro seja seguido à risca?
[M.U.] Não há consenso nacional acerca da prioridade do Cadastro Nacional de Adoção. Eu, particularmente, não acredito que o interesse superior da criança deva sucumbir diante da formalidade de um cadastro. Se a criança encontra-se afetivamente vinculada a um pretendente à adoção e se a adoção apresenta reais vantagens para o infante e os motivos do adotante são legítimos, então a adoção deve ser consagrada. O princípio maior do Estatuto da Criança e do Adolescente é o interesse superior da criança e este deve prevalecer diante da mera formalidade de um cadastro.
[O E.] Qual o caminho mais seguro para adoção?
[M.U.] Sem dúvida alguma, é o Cadastro Nacional de Adoção porque todas as crianças disponíveis para a adoção estão ali destituídas do poder familiar dos pais e, assim, é impossível que um pai ou uma mãe venha reclamar o poder familiar sobre o infante no curso da adoção. No entanto, na adoção fora do Cadastro, os pais biológicos podem desistir da adoção até a sentença e receber a criança de volta.
[O E.] O Ministério Público prevê alguma medida para estimular a adoção de crianças maiores?
[M.U.] No momento, está sendo feita uma revisão de todos os cadastros novos e antigos, inclusive estamos pedindo a exclusão de muitos cadastrados que deixaram de se comunicar com o Setor de Cadastro ou mesmo vêm reiteradamente negando-se a vincular-se a crianças que lhes são propostas. Após este primeiro processo, vamos fazer uma análise do perfil do nosso pretendente à adoção e ver caso a caso. Nós temos muitas pessoas se cadastrando nos últimos meses, a questão é saber se o propósito é adotar uma criança institucionalizada ou, simplesmente, para uma adoção intuito personae, ou seja, fora do CNA. Assim, precisamos primeiramente excluir aqueles cadastros que apenas figuravam com um obstáculo para o próximo pretendente da lista, para podermos reavaliar a situação do Cadastro.
[O E.] Há quem atribua o fato de haver muitas crianças aguardando adoção, em razão da seletividade do pretendente à adoção. O que acontece com as crianças disponibilizadas para adoção, que não encontram casais nacionais? Existe um canal de comunicação entre a Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (CEJAI) e o Juizado?
[M.U.] Sim. Comunicamos-nos com regularidade. Sempre que uma criança não está encontrando adoção nacional, especialmente, grupos de irmãos. A questão é que mesmo os estrangeiros querem crianças até cinco anos de idade hoje em dia.
Preocupa-me a adoção de crianças. A criança tem sofrido, sempre um primeiro abandono e, um segundo, por menor que seja, marcará para sempre a vida dessa criança. Uma criança adotada não só pode dar amor a um casal, a uma pessoa, mas tem a obrigação de receber carinho, respeito, cidadania, amor. A família, que acolhe uma criança em adoção, tem que fazer dela cidadão no seu melhor e mais largo sentido.
Uma criança não é como se fosse a cura de alguma mazela para quem adota. Precisamos compreender esta nova família e quebrar preconceitos. Temos que alertar para a adoção de crianças que não tenham necessariamente de ter saído do berço para a adoção. Temos que pensar nas crianças de mais idade. Temos que nos despir desse preconceito. Uma criança, mesmo com mais idade, pode ser bom filho, dedicar-se aos pais, recebendo deles o amor que o gesto da adoção denota.
Quando adotamos, não estaremos mudando o mundo, mas entendo que a gente pode sim, mudar o mundo de cada criança em situação de abandono, de risco, seja pela via da reestruturação da família e sua permanência no núcleo familiar, seja na adoção. A adoção é a realização do sonho de toda criança ter uma família.
[O E.] O que o Ministério Público pode fazer e precisa fazer pelas crianças que vivem nos abrigos?
[M.U.] Trabalhar e, apesar de tudo, sorrir.
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