Artigo publicado no Correio Braziliense de hoje, 02.08.2011

Triste Brasília! Oh quão dessemelhante!
Paulo José Cunha

"“Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!"” – Gregório de Matos

Quando estouraram os fogos no céu do Planalto Central naquela alvorada de abril de 1960 surgiu Brasília, a flor da poeira, a Capital da Esperança. E o mundo cobriu-se de espanto, e o Brasil festejou em riso, e a alegria se instalou no coração do povo. Alegria pura, que jorrava do sorriso limpo de um mineirinho de Diamantina que nunca perdeu o jeito de menino do interior. Um presidente que se dirigia ao seu povo falando de solidões, futuros e alvoradas. E anunciava a chegada de um tempo em que trabalho rimaria com ousadia, e tudo isso iria acontecer num país onde determinação e bom humor andariam de mãos dadas.

O tempo passou e hoje as páginas dos jornais cobrem-se de notícias em que intolerância, rigor e tristeza é que resolveram andar de mãos dadas. O que diria o querido JK, o presidente pé-de-valsa, o mineirinho que gostava de tomar umas e outras ao som de serestas no boteco Maracangalha, na heróica Cidade Livre, enfrentando as madrugadas frias do planalto, se lesse uma notícia dessas? Ultimamente não faltam notícias de bares fechados por ordem das digníssimas autoridades, atenciosas aos reclamos solitários de ouvidos hipersensíveis aos sambas, boleros e chorinhos que emanam da alegria dos bares. O Café das Senhoritas e o Café da Rua 8 foram interditados por violação da lei do silêncio. As Noites Culturais T-Bone já receberam advertência porque um ou dois moradores da vizinhança reclamaram. Isso é preocupante. As dignas e leais autoridades estão confundindo ordem com ranzinice e tristeza.

Brasília sabe a hora de se levantar. Levantou-se pra acompanhar ao cemitério o corpo de seu fundador, contra as ordens da ditadura. Depois, levantou- se para exigir a volta de eleições diretas. Levantou-se pra botar pra fora um presidente corrupto. E para por na rua um governador que embolsou uns dinheiros mal explicados.

Pois é hora de Brasília novamente erguer o grito antes de se tornar uma cidade triste e solene. E para reclamar a devolução da alegria de seus bares, que as dignas autoridades, num furor de zelo e exagero no cumprimento da letra fria da lei, estão lhe roubando. Pois em todas as cidades do Brasil e do mundo onde existem bares existem canções e brindes à alegria, e nunca alguém morreu ou padeceu de insônia ou foi parar num manicômio por causa disso. Claro que não se está a defender os excessos, que por definição devem e precisam ser exemplarmente combatidos. Tão-somente defende-se, isto sim, o sagrado direito à alegria, sem o qual as cidades se cobrem de silêncio e de tristeza. Conheço um lugar assim, exemplarmente silencioso e igualmente triste: chama-se cemitério.

Já morei perto de bares onde se cantavam boleros e se choravam saudades e mágoas de amor traído. Onde se celebravam também aniversários, aprovações em vestibular, confraternizações natalinas e outras alegrias. E não me lembro de ter me queixado de barulho, que só incomoda quando é alto demais, como o dessas festas onde bilhões de decibéis espalham pela vizinhança o batidão monótono do tuntistunti. Em níveis civilizados, como ocorre em todos os bares onde há música ao vivo, um sambinha bem levado, um baião pé-de-serra ou um bolerão mela-cueca até acalentam o sono, reacendem velhas paixões ou rememoram históricas batalhas de amor. Ah, o amor... Então, que diabos, deixem os bares e seus boêmios em paz. Aposto que o querido Juscelino, o mineiro pé-de-valsa, o presidente bossa-nova, com seu sorrisão escancarado, não está gostando nada dessa onda de intolerância e mau humor que anda se alastrando ultimamente pela sua Brasília. “Mas é a lei”, alguém vai alegar. Pois se a lei é exagerada em seu rigor e vai contra a alegria e a felicidade, então... que se mude a lei, ora! E assim se possa (com responsabilidade e sem excessos), celebrar a vida, o amor e a alegria que inspiraram os que um dia ergueram esta mui valente e atrevida Capital da Esperança.
* Paulo José Cunha é um dos mais importantes jornalistas do Brasil e meu amigo.

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