Nelson Rodrigues escreveu: “A grande tempestade é a de ópera. A orquestra imitando trovão convence muito mais do que o próprio trovão.” Assim era o senador Demóstenes Torres. Quando trovejava sobre os antagonistas, seus raios que os partam produziam mais estrago do que tempestade genuína.
O velho cronista também anotou: “Nenhum raio assusta mais do que um relâmpago de curto-circuito.” Foi assim, ligando os fios desencapados de um mesmo circuito, que o relator do Conselho de Ética do Senado, Humberto Costa, produziu o clarão definitivo. Uniu o Demóstenes pré-Cachoeira ao Demóstenes pós-Cachoeira.
O relator expôs a falta de decoro do acusado sem lançar mão de um mísero grampo da PF. Tampouco valeu-se de recortes de jornal. Para expor o ex-Demóstenes, Humberto serviu-se apenas da defesa apresentada pelo senador ao Conselho de Ética e dos dados que havia sobre Demóstenes nos anais do Senado.
O Demóstenes do discurso de 6 de março, que negou os vínculos com negócios ilegais de Cachoeira, era um opositor “militante” da jogatina que fez a fortuna de Cachoeira. O ex-Demóstenes dos anais operou a favor do jogo –ora por ação ora por inação. Humberto desencavou um discurso em que o senador acusado defendeu explicitamente a legalização do jogo.
O Demóstenes do pronunciamento alegara que se ligara a Cachoeira por razões familiares e fortuitas. O ex-Demóstenes dos arquivos do Senado farejara com meses de antecedência o escândalo que explodiria, em 2004, a partir da autofilmagem em que Cachoeira registrou o encontro no qual Waldomiro Diniz exigiu-lhe propina.
Perscrutando o papelório da CPI dos Bingos, Humberto verificou que, numa de suas conclusões, a comissão do Fim do Mundo atestara que o vídeo produzido pelo bicheiro em 2002 era usado por ele para chantagear um Waldomiro guindado ao estratégico posto de subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil no alvorecer do primeiro mandato de Lula.
Cachoeira tramava unir-se à Gtech, multinacional que geria as loterias da Caixa Econômica Federal. Como sabia que Waldomiro era dado a receber dinheiro por baixo da mesa, usou-o para traficar influência no governo. Nessa época, Demóstenes valeu-se das prerrogativas de senador para requisitar informações sobre a renovação de um contrato da Caixa com a Gtech.
O país não suspeitava que a equipe do então ministro José Dirceu abrigava um Waldomiro. Mas Demóstenes, à época um senador de primeiro mandato, parecia farejar do nada a encrenca que estava por vir. Quando sobreveio o vídeo que implodiu Waldomiro, o senador posou de pitonisa. Os parceiros de oposição elogiaram-lhe a capacidade de antecipar-se ao escândalo.
Ao unir as pontas do circuito em seu relatório, Humberto fez do talento premonitório de Demóstenes uma evidência de que, já naquela época, o Senado abrigava um ex-Demóstenes. A pseudopremonição do senador não era senão uma evidência de que o projeto de paladino da ética alimentava-se das informações providas pelo contraventor aético.
Ao recheio dos anais, Humberto juntou as “confissões” da peça de defesa de um ex-Demóstenes insuspeitado. O reconhecimento de que recebeu presentes do amigo tóxico –a geladeira e o fogão importados, o rádio Nextel que se imaginava imune a grampos, o voo de táxi aéreo… Pronto. Estava claro que o ex-Demóstenes mentira ao posar de Demóstenes no discurso em que defendera a honra perante os colegas, ateando neles solidariedades inauditas.
Presente à sessão do curto-circuito, Antonio Carlos de Almeida ‘Kakay’ Castro, o advogado de um hiper desmascarado ex-Demóstenes, teve franqueados os microfones do Conselho de Ética. Viu-se compelido a elogiar a peça do relator. Enxergou no algoz de seu cliente um quase-colega: o senador Humberto é médico, mas daria um ótimo advogado, disse.
Kakay queixou-se das surpresas injetadas no relatório. Disse que 80% do texto de Humberto é feito de matéria prima nova. Novidades que não constavam da acusação original. “Vim preparado para enfrentar uma representação do PSOL, mas o voto aqui apresentado é relativo a outros fatos. O primeiro direito do cidadão é de ser bem acusado, de ter contra si uma acusação precisa, definida e delimitada.”
Kakay pediu novo prazo de cinco dias para refazer a defesa. O senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), presidente do Conselho de Ética, deu de ombros. Disse que, uma vez aberto o processo por quebra de decoro, os defensores terão a possibilidade de se reposicionar em cena.
O relatório de Humberto Costa (PT-PE) vai a voto no Conselho na próxima terça (8). Deve ser aprovado. Vai-se, então à fase das inquirições, perícias, diligências e do contraditório. O texto preliminar será adensado pelas evidências que pululam no inquérito que corre no STF. O Senado só não leva o escalpo do ex-Demóstenes à bandeja se não quiser. O relator fez a parte dele. Tirou as meias do acusado sem tirar-lhe os sapatos. Caberá ao plenário submeter o amigo de Cachoeira ao chão frio da desonra.
Do josias de souza
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