Meu caro senador, por Cacá Diegues
Cacá Diegues, O Globo
Parece absurdo
falar de ética em pleno carnaval, uma festa dita bárbara, com fama de
tudo permitir sem restrição alguma. Não é bem assim. Como o carnaval foi
inventado por seres humanos em sociedade, há sempre um contrato de
comportamento mútuo entre os que desfrutam dele.
Experimente, por
exemplo, namorar a mulher do passista de sua escola, enquanto vocês
desfilam. Ou tocar o pandeiro fora do ritmo do animado bloco de sua rua.
Experimente interromper o baile à fantasia para propor uma oração em
memória de ente querido.
Nem sempre os acordos morais se baseiam
nos mesmos preceitos, eles devem respeitar inúmeras circunstâncias. Mas
está necessariamente fora do alcance dessas circunstâncias aquilo que
chamamos de direitos humanos, um conjunto de princípios universais que
devem valer para qualquer época, espaço, regime, cultura, religião, o
que for.
É a incorporação desses direitos humanos em nossa cultura
que nos causa horror quando lemos no jornal, como se deu essa semana,
que o xeque saudita Fayan al-Ghamdi maltratou, torturou e estuprou sua
filha de 5 anos, para se vingar da mulher que o abandonara.
Não há
interpretação de hadith (preceitos religiosos deixados pelo profeta)
que justifique o direito de um pai matar a filha e que o criminoso se
livre da justiça ao pagar 50 mil dólares de indenização à mãe da menina.
Acho
que já escrevi aqui, nesse pé de página, que é uma ilusão pensarmos que
todo homem nasce livre. Como qualquer outro animal social, já nascemos
dependendo uns dos outros. Primeiro de nossos pais e de nossa família,
depois da tribo a que pertencemos ou da escola que vamos frequentar. E
finalmente da sociedade em que estamos inseridos, com seu estado, suas
leis, seus hábitos, sua cultura.
A liberdade não é uma condição
natural do ser humano. Ela é uma conquista que fazemos no tempo, o
exercício de nosso desejo num acordo de respeito ao desejo e consequente
liberdade do outro e de cada um.
Segundo Karamazov, criado por
Dostoievski, a perspectiva de liberdade é uma angústia que muitas vezes
não suportamos e desejamos nos livrar dela, depositando-a aos pés do
primeiro tirano sedutor que aparecer.
Igualmente nada natural é a
igualdade entre os homens. O mito da igualdade absoluta gerou os piores
regimes que a humanidade moderna conheceu, em nome de raça, classe ou
religião. Os homens são e serão sempre singulares e portanto diferentes
entre si.
É essa diferença que, uma vez respeitada e absorvida,
faz a humanidade se desenvolver e construir uma civilização mais justa.
Somos iguais perante a mesma lei moral, mas cada um inventa seu destino.
Mas
a diferença não pode ser pretexto para a opressão. Quando vivemos em
sociedade, todos nós temos que ter os mesmos direitos e deveres, as
mesmas oportunidades iguais para atender a nossos desejos.
O que
nos faz aceitar esse acordo social é a possibilidade da convivência em
paz, de uma certa harmonia. Como diz Edgar Morin, estamos perdidos num
planeta pequeno demais, só a solidariedade é capaz de nos salvar. E o
instrumento dessa solidariedade é a ética, a capacidade de viver com o
outro debaixo das mesmas regras morais, uma sábia e pragmática invenção
do homem que não estava nem está na natureza.
Portanto, como já
escreveram Zuenir, Ancelmo e tantos outros jornalistas, neste e em
outros jornais, a ética, meu caro senador Calheiros, não é meio nem fim.
É princípio.
A ética é a melhor invenção do homem, um princípio
sem o qual não se pode viver em sociedade, não se pode conviver com o
outro. Essa história de ética como meio ou fim mais parece conversa
entre ideólogos neonazistas e fundamentalistas religiosos.
A ética
não é uma virtude teologal, senador, mas uma necessidade material que
nos protege do barbarismo. É ela que faz com que não saiamos por aí
eliminando quem não amamos, roubando o que é de todos, mentindo em nome
de nosso próprio proveito pessoal.
Ela não nasce com cada um de
nós. Como a liberdade e a igualdade, ela é uma conquista da humanidade,
um avanço sobre a natureza indiferente a nós. Só o acaso e o que ainda
não sabemos, os dois inimigos irreverentes do pensamento, podem mudar
isso.
Como ser humano, sempre me escandalizo com o fracasso total
do ideário politico, cultural e ético das vanguardas do século 20.
Independentemente de equívocos de sua prática, as mais belas ideias de
hippies e guerrilheiros, talvez seus representantes mais radicais, não
deixaram nada na lembrança de ninguém, a não ser caricaturas de
expressões como paz e amor e do sacrifício por uma mais justa sociedade
humana.
Mesmo os que praticaram essas ideias na juventude, esquecem-nas muito rapidamente. Será que a humanidade não deseja ser feliz?
É
a ética, senador, que nos faz entender, por exemplo, o que disse em
momento inspirado um outro parlamentar, o deputado Miro Teixeira, sobre o
poder que o senhor preside: pior que esse Congresso, só um Congresso
fechado. Também acho.
Cacá Diegues é cineasta
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