Pra entender quem eu sou

Juro de pés juntos e os dedos em cruz que beijo, que, se alguém tiver a impertinência de saber quem eu sou, como eu sou, de onde venho e pra onde vou(aí nem eu sei), leia esse artigo. Eu viví aí. Eu comí aí. E quando chegar na parte onde a gente fazia amor nos apartamentos dos amigos ou nos jardins do Parque do Flamengo, inclua-me, por favor nos dois. Agora saiba quem é a ainda hoje saudosa Geração Paissandu.

A Geração Paissandu
Ruy Castro







Man with Pipe (1968), de Picasso
Os menores de 30 anos podem não acreditar, mas já houve um cinema no Brasil – uma sala de espetáculos, quero dizer – que resumiu todo o cenário de uma época e, em seu tempo, batizou uma geração que a protagonizou. O cinema era o Paissandu, uma modesta sala de 742 lugares na rua Senador Vergueiro, no bairro do Flamengo, no Rio. A época, os anos 1964-1968, os quatro primeiros do regime militar (que ainda se envergonhava de ser chamado de ditadura). E os jovens que o freqüentavam eram então conhecidos (mais pelos seus detratores) como a Geração Paissandu – uma vasta classificação que incluía rapazes e moças radicais em arte, política e comportamento, embora alguns ainda tivessem de dar satisfações à mãe quanto à hora de chegar em casa.

Os ecos do que se passava em torno da tela do Paissandu e nos bares adjacentes eram ouvidos em todo o Brasil daquele tempo e, se calhar, até em Paris. Ali, entre as montanhas de cartões de chope nos botequins e aos sussurros na sala de espera do cinema, antes do começo das sessões, derrubou-se incontáveis vezes a ditadura, libertou-se o Vietnã e decretou-se a vitória definitiva do jeans (da marca Lee) sobre o vinco impecável. Grandes tempos para quem os viveu. Certa noite, no entanto – a de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira –, a Geração Paissandu silenciou sem dizer água vai, e meio que para sempre. Silêncio este que, como tudo mais, passou despercebido, porque a insegurança e o medo impostos pelo Ato Institucional nº 5, baixado naquela noite, engoliram todo mundo.

Hoje, ainda que timidamente, volta-se a falar na Geração Paissandu. Há uma nova geração interessada em saber o que ela significava, quem eram os jovens que a compunham, de onde vinham, o que faziam e o que os motivava. Bem, como este articulista pertenceu em carne, osso e espírito à dita geração, aqui vão alguns – como se dizia mesmo? – aportes ao assunto.

Muito do mito que se faz da juventude brasileira dos anos 60 estava representado de fato na Geração Paissandu. Mas nem todo. Ela era melhor do que esse mito. O cinema era a sua religião dominante, mas era menos verdade que a Geração Paissandu só pensasse nele. E ela estava longe de praticar o pensamento único – todo mundo ali era meio de esquerda, mas, se alguém tivesse mapeado as tendências estéticas e ideológicas em que seus membros se dividiam, o resultado seria quase igual ao número desses membros. O mesmo quanto à sua composição humana. A Geração Paissandu era formada por estudantes, jornalistas e profissionais ligados às áreas artísticas – os suspeitos de sempre –, mas também por jovens advogados, bancários, químicos, comerciários e por qualquer pessoa com um mínimo de gosto pela arte e com uma certa necessidade de exprimir-se, nem que fosse numa mesa de bar. Nem todos eram “intelectuais”, mas todos gostariam de o ser. Se isso induz a que se faça um ótimo juízo da juventude brasileira de meados dos anos 60, não há outro jeito – porque ela era ótima mesmo.

O estereótipo visual com que a posteridade vestiu aquela geração – calça americana (comprada no Mercadinho Azul, em Copacabana), camisas cáqui ou azuis de marinheiro (disponíveis nos melhores contrabandistas da praça Mauá), sandálias franciscanas, barbas à vontade e cabelos quase compridos – também não é de todo exato. Muitos realmente se vestiam assim, mas havia os de aparência conservadora, com ares de Zona Norte: cabelos curtos, blusão de mangas também curtas e calças da Ducal. As drogas eram raras ou inexistentes (o chope, livre). Em matéria de música, a Geração Paissandu estava mais para Tom e Vinicius, Nara Leão, Sergio Ricardo e, assim que ele surgiu, Chico Buarque. Havia um remoto interesse pelos Beatles e absoluta repulsa ao iê-iê-iê. E seus heróis no jazz eram Thelonious Monk, Miles Davis e o Modern Jazz Quartet – um jazz adulto e soturno, ideal para a sensação de fossa que permeava o pedaço e tinha suas razões para existir: a angústia comum da juventude (todo mundo no Paissandu, mesmo que fosse mais velho, parecia ter entre 18 e 22 anos), a sombria situação política nacional e internacional e uma infinita vontade de “participar”, não importava como.

Só que, em vez de ficar se lamuriando pelos cantos, a Geração Paissandu se agrupou e canalizou suas angústias para uma generosa idéia de mudar o mundo, fosse pela arte, pela “revolução sexual” (ativada pela recém-lançada pílula anticoncepcional) ou pela consciência política – se sabatinado, qualquer um de seus membros seria capaz de informar as últimas em Paris, em Hanói ou no Harlem. E, como de praxe na época, era pelo cinema que se descobria o mundo: os franceses estavam mostrando que era possível fazer um cinema barato, cheio de truques e idéias. O Paissandu, com sua luxuosa programação de filmes – controlada pela Companhia Cinematográfica Franco-Brasileira, dos irmãos Jacques, Robert e Maurice Valansi, donos no Brasil do cinema francês e europeu da época –, era o ponto ideal para aquilo. O publicista e programador do cinema era Fabiano Canosa que, aos 24 anos, parecia já ter visto todos os filmes do mundo.

O Paissandu servia de epicentro para vários pontos. O cinema propriamente dito espalhava-se pelos bares ao lado, o Oklahoma, e seu vizinho, o Cinerama, ambos com mesas na calçada (os dois são hoje irreconhecíveis, e o segundo passou a se chamar Garota do Flamengo). Nas noites de sexta e sábado, que eram o apogeu do Paissandu, a falta de cadeiras nesses botequins condenava os retardatários a um terceiro bar, o Venadense, na esquina da Senador Vergueiro com a Barão do Flamengo – a apenas 50 metros, mas que dava a impressão de ficar para lá de Novosibirsk, na Sibéria. E nem podia haver mesa para todo mundo no epicentro porque, se a Geração Paissandu se compunha de uns mil membros efetivos e outros tantos ocasionais, seu, digamos, universo estético e político representava muito mais gente, que também acorria.

As fontes alimentadoras do Paissandu ficavam a quilômetros dele. Uma delas era a então Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), na Esplanada do Castelo. Todos os seus estudantes dos cursos de Ciências Sociais, Jornalismo, História e Letras o freqüentavam, incluindo alguns militantes visados pelo Dops (a polícia política). Outra fonte era a turma do Cinema Novo, com seus cineastas, agregados e belas tietes. E uma terceira fonte era o Solar da Fossa, um casarão em Botafogo habitado por aspirantes a poetas, atrizes, cantores, letristas e jornalistas, todos jovens, bonitos, românticos e ainda anônimos e duros. O Paissandu foi o ponto de encontro para muita gente a caminho da famosa Passeata dos 100 mil, em junho de 1968, e para onde se voltou depois da dita, em busca de um chope. Os meninos do Paissandu, por sua vez, freqüentavam as livrarias Francesa (ao lado da FNFi) e Leonardo da Vinci, na Cidade, nem que fosse para lamber as vitrines com os olhos – poucos tinham fundos para comprar aqueles livros recém-chegados de Paris. Comparado ao centro da esquerda festiva mais famosa e abonada do Rio, que era a do bar Zeppelin, em Ipanema, o Paissandu era quase o reduto da festiva pobre.

É provável que parte dos livros sob as axilas da Geração Paissandu não passasse de uma pose. Mas que pose: alguns desses livros eram Eros e civilização, do filósofo Herbert Marcuse, Tristes trópicos, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, The medium is the massage, do comunicólogo Marshall McLuhan (ainda não havia a tradução em português, mas alguns tinham a edição francesa) e até o Livrinho vermelho dos pensamentos de Mao Tsé-Tung, que alguns liam a sério. Lia-se também muito Sartre e Bertrand Russell. Qualquer um desses livros servia de inspiração para a criação de um “grupo de estudo”, cujo principal objetivo nem sempre era o dito estudo. Às vezes, os fins eram muito menos finos, como a aproximação com alguma moça em quem se estava de olho. E, ao contrário do que se supõe, quase ninguém circulava pelo Paissandu com a revista Cahiers du Cinema (os poucos exemplares recebidos todo mês pela Leonardo da Vinci tinham destinatário certo: os críticos profissionais de cinema, principalmente os do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil).

Um dos principais assuntos do Paissandu podia ser o cineasta Jean-Luc Godard, mas apenas porque, em 1968, nada menos que cinco filmes de Godard foram lançados no Rio (nem todos no Paissandu). Mas Jean-Luc não era uma unanimidade – havia gente na Geração Paissandu que o achava um irresponsável, tanto em cinema quanto em política. Em compensação, seu filme Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), em reprise pela primeira vez no Rio desde 1962, foi programado por Fabiano Canosa para estrear numa segunda-feira de Carnaval, em 1966, e lotou o cinema. Outro que se sustentou em cartaz por semanas, em 1967, foi Pierrot le fou – a marquise do cinema o chamava pelo título em português, O demônio das onze horas. Apesar disso, o recordista de público do Paissandu não foi um Godard, mas o suave As duas faces da felicidade (Le bonheur), de Agnès Varda, com suas dez semanas consecutivas em cartaz, também em 1967. Um sério concorrente foi A religiosa (La religieuse), de Jacques Rivette, com Anna Karina, em 1968. Outros filmes autenticamente Paissandu foram A faca na água (Noz w wodie, 1964), de Roman Polanski, e Mouchette, a virgem proibida (1967), de Robert Bresson. E Canosa já sabia: se algum filme que ele programara fracassasse na bilheteria, era só trazer de volta o drama polonês Madre Joana dos Anjos (1961), de Jerzy Kawalerowicz. (Alguns meninos se esmeravam ao dizer o nome do diretor: Iêrji Cavaleróvitchi.)

Mas, por melhores que fossem, os novos filmes franceses, tchecos ou poloneses que o Paissandu exibia durante a semana não importavam muito. O quente eram as sessões de sexta e sábado à meia-noite, com os clássicos da Cinemateca do Museu de Arte Moderna cedidos por seu diretor Cosme Alves Neto, a pedido de Canosa. Nessas noites, que pareciam mobilizar le tout Rio, a aglomeração nos bares ao redor do cinema já começava por volta de 21 horas, provocada também pela presença quase certa dos rapazes do Cinema Novo, como David Neves, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, o dublê de jornalista e cineasta Mauricio Gomes Leite e, com direito a cadeira reservada, Glauber Rocha. Eles também eram cinéfilos, iam ao Paissandu para rever seus filmes do coração e, antes ou depois da sessão, pontificavam em voz alta no Oklahoma sobre os travellings, planos e contra-planos do diretor. O qual, fosse Rosselini, Visconti ou Bertolucci, só tratavam pelo primeiro nome (Roberto, Luchino, Bernardo), como se fossem íntimos deles nos festivais de Cannes, Veneza ou Karlov-Vary. (E eram mesmo.)

Na primeira sessão de meia-noite promovida por Canosa, em 1965, o filme foi Tabu (1931), de Murnau e Flaherty, numa cópia caindo aos pedaços. Os filmes que ele exibia eram, quase sempre, uma “obra-prima” do cinema. Ou, pelo menos, assim se apresentavam nos programas escritos (de graça) pelos críticos amigos, como Wilson Cunha, José Lino Grünewald ou o próprio Mauricio Gomes Leite e que, depois de mimeografados, eram distribuídos na porta do cinema pelo gerente Balthazar. Graças às preferências pessoais de Canosa, o conceito de “obra-prima” começou a se ampliar para muitos meninos do Paissandu. Fabiano ficara sabendo, por exemplo, que a única cópia existente no Brasil de O mágico de Oz (The wizard of Oz, 1939) estava para ser destruída, porque seu certificado de exibição (expedido pela Polícia Federal) acabara de vencer. Conseguiu uma licença da polícia para exibi-la pela última vez e, com isso, alguns daqueles jovens, que nunca tinham visto o filme, se convenceram de que um musical com Judy Garland podia ser um filme tão “de arte” quanto um severo Eisenstein ou Pudóvkin.

A platéia do Paissandu talvez fosse a única no mundo que, ao ver rolar na tela os créditos de um filme, aplaudia ou vaiava o nome de atores coadjuvantes, roteiristas e até fotógrafos – ao vê-la prorromper em palmas diante do nome de Raoul Coutard (o fotógrafo favorito de Godard), por exemplo, chamá-la de sofisticada era pouco. E ai de quem não fizesse jus aos seus padrões. Numa sessão de meia-noite em que se exibiu Oito e meio, de Fellini, em 1966, o complemento foi um curta-metragem de Julio Bressane e Eduardo Escorel, Bethania bem de perto. A platéia não perdoou e vaiou. A vaia era ao filme, não ao personagem, mas, em meio aos assovios, ergueu-se um magérrimo e desconhecido Caetano Veloso e fez sua primeira e impressionante aparição pública no Rio, encarando a platéia e a vaiando de volta.

O curioso é que, hoje, ao olhar para trás, quase chego a acreditar que o cinema era algo secundário nos interesses da Geração Paissandu. Tudo bem que a chegada de Glauber ao Oklahoma fosse anunciada com horas de antecedência (e, quando ele aparecia, o frisson fosse inevitável). Em compensação, em outras mesas, fervilhavam as discussões políticas – o Paissandu fazia mais a linha chinesa, anti-soviética, e não será exagero dizer que vários aderentes da futura luta armada contra os militares foram convertidos ali mesmo, no seu território. Mas, acima de tudo, pontificavam no Paissandu as discussões “existenciais”, para as quais só havia uma solução: a cama. Era o que se pregava em 1968. Daí porque, entre as moças (às dezenas, centenas, muitas de jeans surrados; outras, de minissaia e meias 3/4) e os rapazes da Geração Paissandu, houvesse uma tão feliz convergência de desejos – a qual, pela inexistência de motéis, tinha de ser consumada no apartamento de um amigo nas proximidades ou nos jardins do então novíssimo parque do Flamengo.

Grandes tempos, sem dúvida, e devo saber do que estou falando. Afinal, em 1968, eu tinha 20 anos, cursava o 2º ano de Ciências Sociais na FNFi, trabalhava no Correio da Manhã, morava no Solar da Fossa, e o Paissandu não era apenas um cinema a 300 metros da casa de meus pais. Era um segundo lar, muito melhor do que o primeiro. Em dezembro de 1968, no entanto, veio o Ato 5. Ele marcou o fim daquela época e fez com que toda uma geração se sentisse órfã e, daí a tempos, sem-teto. O Correio da Manhã seria destruído; a FNFi, arrancada de seu berço no Castelo e desmembrada em institutos; o Solar da Fossa, derrubado (e, em seu lugar, surgiria o shopping Rio Sul); e a Geração Paissandu, assim como toda aquela geração, rachou: uma parte foi para a droga, alguns pegaram em armas, muitos foram embora do país e a maioria enquadrou-se. O ideário da Geração Paissandu era modesto: sexo, cinema e uma firme decisão de mudar o mundo. Daí termos ficado tão ofendidos quando o mundo foi mudado à nossa revelia.

Surpreendentemente, o Paissandu não fechou. Fabiano Canosa tomou conta do forte até 1970, quando foi instruir os próprios americanos, tornando-se programador de cinemas de arte em Nova York, e nunca mais voltou. Depois, sim, o Paissandu morreu e ressuscitou muitas vezes, como cinema comercial ou “de arte”, sempre com o nome de Paissandu. Está lá até hoje, no mesmo lugar, e ainda passando bons filmes. Mas nunca mais foi o mesmo. Nem nós.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Também capítulo do recém-lançado livro de Ruy Castro, Um filme é para sempre – 60 artigos sobre cinema, organizado por Heloisa Seixas

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