Repórteres do O Povo vão ao interior ver o drama da saúde

 O Ceará à procura de mais médicos
O POVO visitou dez postos de saúde do Interior e constatou que - apesar de ainda deficiente - a estrutura da saúde teve melhora, mas o avanço não foi acompanhado pela oferta de médicos
EDIMAR SOARES
O posto de saúde Cláudio Camelo Timbó, em Hidrolândia, apresenta boa estrutura, com vários equipamentos e remédios. Atendimento, entretanto, fica comprometido diante da falta de médicos
Carlos Mazza
Enviado ao Sertão Central e Ibiapaba
carlosmazza@opovo.com.br


Recém-inaugurados e bem equipados, três postos de saúde de Hidrolândia – a 252,2km de Fortaleza – não estão atendendo a população do Município. As unidades possuem sala de coleta de sangue, depósito refrigerado de injeções, ambulância, consultórios bem equipados, leitos de observação, macas e equipe completa com enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes de saúde. Apesar de “prontos”, os postos esbarram em problema antigo e ainda crônico no interior do Ceará: faltam médicos para atender a população.

Em maior ou menor grau, a situação se repete em todos os municípios da região. Ao longo da última semana, O POVO visitou dez postos de saúde em cinco cidades do interior do Estado, e constatou que – apesar de ainda muito deficiente – a estrutura da saúde pública no sertão cearense teve melhora, em avanço que não foi acompanhado pelo aumento na oferta de médicos.

Na maioria dos casos, os municípios até contam – “no papel” – com profissionais para cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS). Na prática, no entanto, o que se observa é que os médicos não cumprem a carga horária do Ministério da Saúde. Nos dez postos visitados pela reportagem, apenas um médico foi encontrado em serviço.

O abandono se dá de diversas formas. Em Pacujá, por exemplo, horário previsto para o turno da tarde vai das 15h às 17 horas. Na última segunda-feira, no entanto, os três postos de saúde do Município - todos com boa estrutura - se encontravam sem médicos já pelas 15 horas. “Foram trabalhar em outras cidades e voltam só amanhã”, explica a recepção.

Já em Varjota, médica que deveria atuar das 8 horas ao meio dia da terça-feira atendeu apenas 12 pacientes e foi embora, pois tinha “reunião marcada”. A informação causou revolta entre pacientes, que já aguardavam desde as 6h30min na unidade. “Isso sempre acontece por aqui. Se eu tivesse para morrer, morria aqui mesmo”, diz Francisca Rodrigues, 47, que chegou em 13º lugar e teve de voltar para casa sem atendimento.

Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec), Ivan de Araújo, o órgão defende que médicos cumpram a carga horária previsto pelo SUS, mas afirma que a responsabilidade pela cobrança é dos gestores municipais. “Se o gestor contratou o médico e acertou com ele que ele venha apenas dois dias da semana, o profissional tem todo o direito de cobrar o que está no contrato”, diz.

A fala é contestada pelo presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Ceará, Wilames Freire Bezerra. Segundo ele, por conta da “crítica e generalizada” ausência de médicos no Estado, gestores ficam obrigados a aceitar que alguns médicos “burlem” a carga horária do SUS. “Sob o risco de ficar sem médico nenhum, eles acabam se sujeitando, até de forma irregular, a isso”.

Ivan de Araújo diz reconhecer que há carência de médicos no Estado, mas afirma que esse fator não pode ser visto como responsável pelas deficiências do SUS como um todo. “Existem outros fatores, como o problema seríssimo do financiamento do SUS”.

NÚMEROS
 9,9
mil é o número de médicos em exercício no Ceará, segundo dados do CFM 1,16
é a razão de médicos por mil habitantes do Estado. É o 7º pior índice do Brasil

Gestores se dizem "reféns" de médicos; categoria contesta
A pouca oferta de médicos para o Interior faz com que prefeitos e secretários de Saúde fiquem “reféns” das exigências de profissionais na contratação, afirmam gestores de Municípios visitados pelo O POVO. Segundo eles, a grande procura por profissionais faz com que médicos só aceitem trabalhar em cidades que não cobrem carga horária, o que prejudica a população.

“Isso é um problema crônico, que acontece em todo o Brasil. Como é grande a necessidade de médicos no Interior, os profissionais só aceitam trabalhar para uma Prefeitura quando são liberados nos outros turnos para trabalhar em outro Município. Se o gestor não aceita ou impõe dificuldades, o médico não se desloca para o Município”, diz o secretário de Saúde de Pacujá, Antônio Carlos Oliveira.

Segundo os gestores, muitos médicos ainda fazem uma série de exigências para trabalhar no Interior, como a concessão de ajudas de custo e o estabelecimento de “cotas de atendimento”. “Eles recebem R$ 12 mil, além de comida e moradia”, diz Ana Ximenes, secretária de Saúde de Varjota.

Para os secretários, a solução é uma só: aumentar a concorrência fora da Capital. “Precisa estimular que venham para cá, porque quando surgem médicos hoje, é em leilão, com disputa. O (programa) Mais Médicos pode ser solução”, diz Sibelly Martins, titular da Secretaria de Saúde de Hidrolândia.

O presidente do Conselho Regional de Medicina do Ceará, Ivan de Araújo, reafirma que o interesse do órgão é o de que as cargas horárias estabelecidas sejam cumpridas, mas reforça que o que foi combinado no ato da contratação deve ser respeitado. De acordo com ele, a criação da carreira de médico do Estado, garantindo direitos e condições de trabalho, seriam medidas mais eficazes no sentido de “interiorizar” a Medicina. (CM)


Sofrimento prolongado leva moradores à descrença

Cansados de viagens frustradas a hospitais e de receber "portas na cara" na saúde pública, moradores de áreas carentes afirmam que já deixaram de procurar atendimento preventivo
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FOTO EDIMAR SOARES
Sem atendimento, Terezinha viu o filho de nove anos falecer
Se parecem complexas as causas da falta de médicos no Interior, o saldo do imbróglio para a população mais pobre é de um sofrimento prolongado que leva à descrença. Cansados de viagens frustradas e de receber “portas na cara” no serviço público de saúde, moradores de comunidades carentes ouvidos pelo O POVO afirmam que já deixaram de procurar atendimento preventivo em postos de saúde.

“Para chegar em hospital é muito difícil, é muita complicação e nada de resolver. Deus me livre se acontecer alguma emergência mas, assim, no dia a dia, resolvo na farmácia ou apelo para a fé mesmo”, diz Francisco de Sousa, 29, morador da zona rural de Reriutaba. Ele conta que se recuperou de virose nos últimos dias - “sem visita ao doutor”.

Em Hidrolândia, o recém inaugurado posto de saúde Cláudio Camelo Timbó já virou motivo de certa piada entre moradores. “Vocês são de jornal? Vieram falar que o posto não tem médico, né?”, arrisca a dona de casa Rosimeiry Sousa, 26. Na manhã de terça-feira, ela tentava levar a filha de apenas um ano ao médico, mas voltou para casa sem ser atendida. “A gente tem que lidar com bom humor, porque não adianta. Só não entendo para que inaugurar posto que não funciona”, diz.

Vítima de um ataque de marimbondos, o servente Benedito Cordeiro, 33, de Reriutaba, conseguiu ser atendido apenas na terceira viagem ao médico. “Me arrependi de ter vindo. Deveria ter resolvido com algum remédio mesmo”.

Vítimas
Em terras marcadas pela falta de profissionais de saúde, no entanto, sobressaem as histórias tristes. Sem a mesma sorte, a dona de casa Francisca Maria de Sousa, 42, conta que viu o próprio pai falecer por conta da ausência de médicos. “Ele sofreu um enfarto. Levamos para postos de saúde e hospitais próximos, mas só encontramos enfermeiros. Depois de algumas horas, ele morreu, e não conseguimos nem sequer um atestado do óbito, porque não havia ninguém para assinar”.

Outra vítima da falta de médicos foi a dona de casa Terezinha de Jesus Araújo, 41. No último mês, ela viu falecer em suas mãos o filho de nove anos. “Ele começou a passar mal depois de comer alguma coisa. Depois de muita busca, conseguimos que ele fosse atendido em um posto de saúde. Alguns dias depois, ele voltou a passar mal, mas não conseguimos ser atendidos. Ele morreu na fila”.

Sem médicos no posto de saúde no momento da morte, Terezinha conta que também ainda não conseguiu o atestado de óbito do filho. “Sei que ele poderia ter ficado bem se tivesse sido atendido”, diz. (Carlos Mazza)

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