Lampião, místico ou
mandingueiro?
Geraldo Duarte*
No cenário das crendices nordestinas o cangaço não poderia estar
ausente.
Além daquelas arraigadas nos costumes das populações da caatinga, outras
nasceram com o cangaceirismo.
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, não somente praticava a
mandingaria por ser altamente supersticioso, mas como estratégia de ilusória
demonstração de miraculoso diante dos sertanejos e dos policiais incumbidos de
sua perseguição. Nessa encenação ardilosa simulava e difundia feitos
mirabolantes, assombrosos.
O jornal Correio de Aracaju, edição de 02/08/1938, em matéria sobre a
morte de Virgulino, comenta que o povo acreditava ter ele “pacto com o diabo”, o
condão de “desviar a direção das balas apontadas para si”, que “mantinha
conferências com o chifrudo” e, para fugir das vistas dos perseguidores,
“envultava-se”.
Mais fenômenos, absurdamente irreais, eram-lhe creditados e propalados
pela cangaceirada. Garantiam-lhe ter o “corpo fechado” e oralisar “rezas fortes”
capazes de o tornarem incólume e invencível.
Quando acampado ou acantonado, surgisse uma cobra ou um pássaro cantante,
asseverava tratar-se de aviso agourento do sobrenatural. No mais breve tempo,
reunia todo o bando e deslocava-se para outras paragens.
Com o objetivo de incutir nas pessoas das áreas invadidas ter o domínio
de poderes misteriosos, fingia rituais e utilizava pantomimas
várias.
Numa de suas passagens por Novo Amparo, Bahia, decidiu almoçar numa das
casas do povoado. Antes da refeição, acendeu velas nos quatro cantos da sala,
sussurrou palavras ininteligíveis e gesticulou, tudo sob o olhar de espanto dos
presentes.
Durante os tiroteios com soldados, junto com
seus capangas e aos gritos, invocava por Deus e pelo diabo. Todos
imitavam grunhidos, relinchos, zurros, latidos, berros e produziam sons
esquisitos com o fito de aterrorizar os militares.
Impressionados, existiram milicianos
crentes de que eles “viravam demônios”.
Onde estivesse, o fictício capitão, ao meio-dia, hora que tinha como má,
ajoelhava-se e orava. Por igual, repetia o rito à meia-noite, momento em que
dizia estar o diabo pondo a perder as criaturas.
Jamais desrespeitava padre, inclusive, beijava as mãos dos que encontrava
pelos caminhos. Os juízes recebiam veneração especial.
Pendurados no pescoço trazia escapulários, amuletos diversos e um
crucifixo de ouro maciço. Sobre estes, enlaçado, um vistoso lenço, em cujas
pontas viam-se medalhas presenteadas por padre Cícero, quando esteve em Juazeiro
do Norte, Ceará.
O major Inocêncio de Lima, fazendeiro no município de Custódia, declarou,
em 1936, a jornalista do Diário de Pernambuco, que cangaceiro maior afirmou-lhe
jejuar todas as quartas-feiras em respeito ao sacerdote
cratense.
As teatralidades do líder da cangaceiragem, para mostrar-se e ao seu
bando poderosos e indestrutíveis, muito impressionavam os
campesinos.
Cuidadosamente, o grupo apagava os rastros, em determinado trecho da
marcha, para simular um “desaparecimento no ar”. Deslocava-se com os integrantes
calçados com alpergatas de rabicho ao contrário, conduzindo os perseguidores a
inversão do rumo tomado. Estes, constituem-se exemplos das inúmeras enganações
praticadas. E, na maioria das vezes, exitosas.
Certa feita, atacados por uma volante policial, provocaram fumaça na mata
e, através dela, escaparam em rigoroso silêncio. O ocorrido propalou-se como um
sumiço mágico, graças às forças protetoras do além, sendo arguido com o
testemunho da própria tropa.
Devoto de São Jorge, Santa Luzia e São Thiago, recorria a esses santos
nos momentos difíceis de seu sangrento banditismo.
Ida Ribeiro de Sousa, sobrevivente da refrega de Angicos, em 1938, e
mulher de José Ribeiro da Silva, o Zé Sereno, citou as rezas obrigatórias
diárias da rotina de Lampião. O Padre Nosso e o Ofício a Nossa Senhora, no
amanhecer do dia, ato compartilhado com os seguidores.
Frequentemente, costumava recitar a oração de fechamento de corpo, que
teria recebido das mãos do “Padim Ciço”:
"Justo juiz de Nazaré, filho da Virgem Maria,
que em Belém fostes nascido entre as
idolatrias. Eu vos peço senhor, pelo vosso sexto dia e pelo amor do meu
padrinho Padre Cícero que, meu corpo não seja preso, nem ferido, nem morto, nem nas mãos da justiça envolto.
Pax tecum, pax tecum, pax
tecum.
Cristo assim disse aos seus discípulos: se os seus inimigos vierem para prender-me, terão olhos e não me verão, terão ouvidos e não me ouvirão. Terão bocas e não me falaram. Com as armas de São Jorge serei armado. Com a espada de Abraão serei coberto. Com o leite da Virgem Maria serei borrifado.
Na arca de Noé serei arrecadado. Com a chave de São Pedro serei fechado,
onde não me possam ver, nem ferir, nem matar, nem sangue do meu corpo tirar. Também vos peço senhor, por aqueles três cálices bentos, por aqueles três padres revestidos, por aquelas três hóstias consagradas, que consagrastes ao terceiro dia, desde as portas de Belém até Jerusalém e pelo meu santo Juazeiro, que com prazer e alegria eu seja também guardado
de noite como de dia. Assim como andou Jesus no ventre da virgem Maria,
Deus adiante paz na guia. Deus me dê à companhia, que deu sempre a virgem Maria, desde a casa santa de Belém até Jerusalém. Deus é meu pai. Nossa mãe das dores, minha mãe. Com as armas de São Jorge serei armado. Com a espada de São Thiago serei guardado para sempre, amém.".
Cristo assim disse aos seus discípulos: se os seus inimigos vierem para prender-me, terão olhos e não me verão, terão ouvidos e não me ouvirão. Terão bocas e não me falaram. Com as armas de São Jorge serei armado. Com a espada de Abraão serei coberto. Com o leite da Virgem Maria serei borrifado.
Na arca de Noé serei arrecadado. Com a chave de São Pedro serei fechado,
onde não me possam ver, nem ferir, nem matar, nem sangue do meu corpo tirar. Também vos peço senhor, por aqueles três cálices bentos, por aqueles três padres revestidos, por aquelas três hóstias consagradas, que consagrastes ao terceiro dia, desde as portas de Belém até Jerusalém e pelo meu santo Juazeiro, que com prazer e alegria eu seja também guardado
de noite como de dia. Assim como andou Jesus no ventre da virgem Maria,
Deus adiante paz na guia. Deus me dê à companhia, que deu sempre a virgem Maria, desde a casa santa de Belém até Jerusalém. Deus é meu pai. Nossa mãe das dores, minha mãe. Com as armas de São Jorge serei armado. Com a espada de São Thiago serei guardado para sempre, amém.".
Na madrugada de 28 de julho de 1938, na fazenda Angico, fronteiriça à
vila Piranhas, Sergipe, estava Lampião morto e derrotado o cangaceirismo. Sem
misticismo ou mandingaria.
*Geraldo
Duarte é advogado, administrador e dicionarista.
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