Opinião

Cartas de Seattle: Não mexam com o meu sotaque, por Melissa de Andrade

Um dos maiores empecilhos à adaptação definitiva em um país estrangeiro pode ser a barreira da língua. Por maior que seja o domínio do idioma, a pronúncia – aqui e ali – pode denunciar: não, você não é um nativo.
Não que isso seja necessariamente um problema. Em Seattle tem tanto estrangeiro que sotaque diferente nem é novidade. É difícil andar na rua e não ouvir um outro idioma. Os profissionais que vêm do mundo todo para trabalhar nas empresas de tecnologia que fizeram a fama da cidade nas últimas décadas conferem mesmo esse ar internacional à cidade.
Cá entre nós, desconfio que a conhecida introversão local possa ser o verdadeiro motivo para demorarem a lhe perguntar:
– Mas você é de onde mesmo?
Até porque tem gente que se ofende. Como o senhor de sotaque carregado que respondeu com rispidez definitiva: “Sou cidadão dos Estados Unidos”. É, uma vez adquirida a cidadania, não tem jeito de falar que desafie seus direitos. Caldeirão de imigrantes é assim mesmo: nunca se sabe a ascendência de quem mora ao lado.
E isso deveria importar?


Quem se ofende é porque entende a pergunta como acusadora e excludente. “De onde você é?” já comunica, de cara, que a pessoa acha que você não pertence aonde está. Estabelece um marco. Eu sou daqui. Você, não. E que isso fique bem claro.
E aí eu faço uma viagem rápida ao Sudeste do Brasil varonil. Quatro em cada cinco pessoas que encontro comentam sobre o meu sotaque nordestino durante os primeiros cinco minutos. Minha reação é sorrir amarelo e desconversar logo em seguida, para não ter que fazer a revelação bombástica: você, caro interlocutor, também tem sotaque. Todo mundo tem sotaque. Uns chiam, uns arrastam, uns cantam, uns carregam nos erres, outros multiplicam as vogais. E nem por isso eu começo um encontro dizendo “Olha, gente, que bonitinho que ela fala”.
Voltei pra Seattle sabendo que nem seria preciso sair do meu próprio país para vivenciar a barreira que o uso do idioma pode estabelecer.

Melissa de Andrade é jornalista com mestrado em Negócios Digitais no Reino Unido. Ama teatro, gérberas cor de laranja e seus três gatinhos. Atua como estrategista de Conteúdo e de Mídias Sociais em Seattle, de onde mantém o blog Preview

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