Anfitrião do papa em sua primeira viagem internacional – a ida ao Rio para participar da Jornada Mundial da Juventude, em junho de 2013– dom Orani diz que a Igreja mudou em menos de um ano de pontificado de Francisco.
"Ele procurou tornar a Igreja mais proativa, que toma a iniciativa. Não é mais aquela que só se defendia, respondendo às questões, mas sim a que propõe as questões". Afirma também que as dívidas de cerca de R$ 90 milhões deixadas pela Jornada estão equacionadas e promete que em breve todos os fornecedores do evento serão pagos.
"A Jornada mostra que o bem que a Igreja faz vai além do interesse econômico. Fazemos o bem, mesmo que tenhamos que pagar por isso."
Leia abaixo trechos da entrevista de d. Orani à Folha.
Dom Orani visita comunidade do Pavão-Pavãozinho em Copacabana, no Rio de Janeiro
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Folha - Como o senhor recebeu a notícia de que seria cardeal?Dom Orani - Tinha celebrado a missa das oito na TV Brasil e ia visitar várias paróquias. No celular tenho um aplicativo para seguir o papa. Estava no carro escutando o papa Francisco no aplicativo. Ele começou a falar do consistório [reunião de cardeais com o papa] e percebi que ele ia anunciar os novos cardeais. Ouvi meu nome e me deu um calafrio. 'Meu Deus do céu, onde eu fui parar agora?'. É uma responsabilidade muito maior. Foi um dia inteiro de repórteres andando atrás de mim, subindo e descendo as ladeiras do Pavão-Pavãozinho [favela íngreme em Ipanema]. Dei uma canseira em todo mundo naquele dia.
Mas sua nomeação era tida como certa há algum tempo...
Falam desde que vim para o Rio [em 2009], por causa da tradição de se ter um cardeal na Arquidiocese. Mas o papa é livre para nomear quem ele quiser. Não é porque a cidade é sede cardinalícia, ou porque alguém já é bispo há muito tempo. Isso quem resolve é o papa, ainda mais o papa Francisco.
O que mudou na igreja nesse quase um ano do pontificado de Francisco?
É natural termos agora um papa mais aberto para o mundo. Bento 16 foi um professor, aprofundando questões teológicas. Agora temos um latino americano, jesuíta até no modo de falar, e que, imagino, esteja colocando em prática muitas coisas que ouviu no consistório e que a Igreja não sabia como fazer. Bento 16 teve um trabalho muito importante de reflexão e a Igreja precisa desse aprofundamento. Nesse ponto ele é imbatível. Já o papa Francisco, sem deixar de olhar a teologia, é mais da proximidade. Ele fala e faz. Fala dos problemas sociais e vai a Lampedusa ver os prófugos; chama o mundo inteiro para jejuar para que não se joguem mais bombas na Síria. Lida com as questões da Igreja e começa a atuar para sua reformulação, também com atitudes, como simplificar onde vai morar, o carro que vai usar...
O que ele põe em prática é o que está no documento da 5ª Conferência da Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) [a conferência aconteceu em Aparecida, em 2007, e o então cardeal Bergoglio foi o coordenador do texto final]. Foi esse documento que ele entregou para a presidente Dilma. Aliás, ela me contou que o papa entregou uma cópia para ela toda marcada com clipes e disse que ela não precisava ler tudo, só os pedacinhos marcados. Só não sei quais pedacinhos ele marcou.
A dedicação de Bento 16 às questões teológicas não tornou a Igreja mais distante dos católicos?
O papa Francisco procurou tornar a igreja mais proativa, que toma a iniciativa. Não é mais aquela que se defende respondendo às questões, mas sim a que propõe as questões. Quando vamos evangelizar, o primeiro anúncio, como chamamos, é o anúncio alegre, de perdão, de misericórdia, de que Deus te ama. Em qualquer curso de evangelização o esquema é esse. Bento 16, como teólogo, já tinha uma coisa mais fechada, de pensar nas questões teológicas, mas o papa Francisco tem um jeito mais pastoral, da Igreja que quer levar uma boa notícia para as pessoas. Uma vez que a pessoa percebe o quanto é amada por Deus, se começa a mudar a vida. Aí podem surgir os novos conceitos. Francisco pegou esse esquema de evangelização; Bento nem falava disso. É uma questão de jeito. Em seus escritos Bento 16 dizia a mesma coisa, mas ele é um intelectual e apresenta isso de outra forma.
A Jornada Mundial da Juventude, no Rio, foi o ponto de partida para essa mudança na forma de ação?
A Jornada foi uma apresentação do papa, de seu programa, para o mundo e para a Igreja. O que ele falou aqui para os bispos sobre teologia, para a sociedade sobre questões sociais, foram as linhas principais do que depois surgiu no documento que escreveu ["Alegria do Evangelho", divulgado em novembro de 2013]
Antes de o papa chegar ao Rio, houve vários problemas relativos à Jornada, como a mudança do lugar, a discussão sobre sua segurança...
Se você soubesse o trabalho que deu para convencer todo mundo que ele podia vir de carro sem blindagem, que podia andar com o papamóvel... Meu Deus do céu, não foi fácil. Diziam que ele não podia andar de carro aberto porque alguém em um prédio podia dar um tiro. Mas para ser do jeito que eles queriam, sem ver o povo, nem adiantava vir. Foi uma luta. Só conseguimos porque o papa quis assim e se responsabilizou. E quando ele chega, deu aquilo, por erro da Polícia Federal.
O sr. estava no carro com o papa quando ele foi cercado por populares no centro do Rio?
Estava no carro atrás. Não vi direito o que acontecia e não entendia porque, se tinha uma via livre no meio, enfiaram a gente no meio daquele povo todo. Quando o comboio parou, achei que o papa tinha pedido, mas meu celular começou a tocar e as pessoas diziam para eu mandar o papa fechar a janela. Que janela? O que está acontecendo? Ali foi o batismo. Depois daquilo, não precisava ter medo de mais nada. Imagina só, na apresentação do papa ao mundo me acontece um negócio daquele! Mas o papa tirou de dez a zero.
E naquela noite ainda houve uma manifestação violenta na porta do Palácio Guanabara, onde ele era recebido pela presidente Dilma e outras autoridades. Quais foram as impressões do papa?
Lá dentro não tínhamos dimensão do que acontecia, então queríamos que o papa fosse cumprimentar o pessoal lá fora. Mas a segurança brasileira não deixou. Quando voltamos para o Sumaré [residência oficial da Arquidiocese do Rio], ele estava muito contente, ria contando como o povo quase entrou pela janela do carro. Ele viu como uma bela manifestação, não como um erro da polícia. Então, por circunstâncias não pensadas e não desejadas tudo deu certo.
A interdição da área de Guaratiba por causa das chuvas e a transferência para a praia de Copacabana está nesse caso?
Claro que depois do fato concretizado ficou bonito, mas na cabeça da gente Guaratiba seria um apogeu, tudo muito planejado. Em Copacabana tivemos que arrumar tudo de última hora. Se tivesse dado muito certo em Guaratiba seria uma glória nossa, mas como foi em Copacabana, o que ficou foi que Deus fez as coisas porque não tínhamos planejado e pensado [dom Orani ri].
O evento deixou uma dívida em torno de R$ 90 milhões...
Quando planejamos tudo direitinho, não ficaria nenhuma dívida
O que causou a dívida, então?
Primeiro, a mudança do local inicialmente previsto, a Base Aérea de Santa Cruz, para Guaratiba. Na Base não teríamos que fazer terraplenagem, asfaltar. Mas por questões da presidência da República tivemos que mudar de lugar. Depois, tínhamos muita gente -no último dia eram 3,5 milhões de pessoas na praia-, mas o número de inscrições foi menor que o de Madri [em 2011]. Lá foram 500 mil inscritos, aqui tivemos pouco mais de 300 mil. Terceiro, tivemos que transferir tudo para Copacabana. A dívida está sendo negociada, mais um pouco e terminamos de pagar todos os fornecedores. Já pagamos todos os funcionários. Ainda estamos fazendo campanhas e o dinheiro está pingando. Quando chegar o dinheiro do papa [que doou R$ 11 milhões para ajudar a saldar a dívida], vamos ver quanto ainda fica faltando.
O papa já demonstrou ser muito preocupado com as finanças da Igreja. Ele deu algum puxão de orelha na Arquidiocese por causa do déficit da JMJ?
Não.
Como se chegou à decisão de ele contribuir?
Por iniciativa dele. Ainda aqui ele disse que queria contribuir porque a Jornada era um trabalho para o mundo inteiro. Dissemos que assim que tivéssemos uma visão de como ficariam as coisas, repassaríamos para ele. Quando a CNBB esteve lá, ele cobrou. Mandamos um relatório e ele nos disse que ia contribuir.
Como são as cobranças dele? Ele já ligou alguma vez para o sr.?
Não. A não ser que ele tenha ligado e eu não tenha atendido, como aconteceu com as freiras [no início do ano Francisco ligou para um convento. Não foi atendido e deixou um recado na secretária eletrônica].
O sr. é arcebispo de uma cidade que enfrentou um ano difícil, com uma série de manifestações violentas. Qual sua avaliação sobre esses movimentos?
Ao mesmo tempo que é positivo as pessoas se manifestarem, há grupos que nem sempre tem um objetivo. Um movimento que não tem uma cabeça e está cheio de ideias corre o risco de infiltrações. Reivindicação tem que ser feita de forma que se respeite o outro.
Nas missas o sr. fala sobre isso?
Dependo do tema que a palavra de Deus me coloca, não posso inventar um tema a meu bel prazer. Mas a palavra de Deus pode ser atualizada. Tem que falar da violência, da desagregação, saúde, transporte, habitação, mas não basta só ter bem estar social, é preciso amar um ao outro, cuidar da parte religiosa. Precisamos partir do amor ao próximo para ter um mundo diferente e a Jornada mostrou isso. Tivemos problemas, grupos que queriam cometer violências, blasfemaram contra imagens. Houve fila para ônibus, para comer, um frio danado Mas não houve violência. Claro que vamos lutar por questões sociais, mas é preciso desarmar os corações. A gente passa tão rápido pelo mundo, daqui a pouco somos só um monte de ossos, por que não passar para fazer o bem?
O que o sr. diria para os jovens que simularam atos sexuais e quebraram imagens sacras durante a Jornada?
Que, apesar do que fizeram, Deus os ama. O que eles fizeram é contra eles mesmos. No que essas imagens atrapalham a vida deles? Sabemos que são só representações, mas o que eles diriam se alguém pegasse a imagem da mãe ou do pai de um deles e fizesse a mesma coisa? Lamento que eles tenham perdido tempo fazendo isso. Tem tanta coisa importante para fazer no mundo.
O papa Francisco tem feito uma "faxina" no Vaticano, não só em questões financeiras, mas também com relação a problemas ligados a suspeitas de pedofilia, homossexualismo. O sr. enfrentou problemas semelhantes no Rio em algum momento?
Todo lugar onde chegamos tem sempre muita coisa para fazer. E quando eu deixar, quem vier também terá muito o que fazer. Nunca se chega à perfeição.
Qual a situação financeira da cúria, que mesmo tendo vários imóveis não parece passar por um momento confortável?
As pessoas misturam as coisas. O patrimônio não é da Arquidiocese. Tem as irmandades, casas religiosas que têm propriedades. Nem tudo que falam que é da Igreja é da Arquidiocese. Estamos fazendo levantamento para saber quais são nossos imóveis, como estão sendo
cuidados.
Mas a situação é difícil, péssima ou boa?
É equilibrada.
A Jornada foi um bom negócio?
Financeiro, não. Isso mostra que o bem que a Igreja faz vai além do interesse econômico. Fazemos o bem, mesmo que tenhamos que pagar por isso.
Qual sua avaliação sobre a substituição de dom Odilo Scherer na comissão que supervisiona o Banco do Vaticano?
Não vejo isso como nada contra dom Odilo ou sua capacidade. É como em qualquer empresa: você pode ser um ótimo chefe, mas mesmo assim resolvem trocar para mudar algum outro aspecto. De vez em quando é bom deixar que outras pessoas sintam o peso.
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