Quando vale um doador de campanha nos EUA.

Shirley Temple faz falta a Obama

Dorrit Harazim, O Globo
Existe uma fórmula certeira para presidentes zerarem dívidas políticas com determinado tipo de doador de campanha: nomeá-lo embaixador. A prática de recompensar amigos e contribuintes com o cargo mais alto da carreira diplomática é tão antiga quanto a política das nações.
Nos Estados Unidos, Abraham Lincoln se deu bem ao recorrer a esse expediente para conquistar votos a favor do término da Guerra Civil. Já de Barack Obama não se pode dizer o mesmo se analisarmos as ecléticas nomeações anunciadas pela Casa Branca neste início de 2014.
Talvez nem ele ainda se lembre da intenção que anunciou em janeiro de 2009 de fazer apenas “algumas” indicações fora das fileiras do State Department. Somando apenas as escolhas feitas somente neste segundo mandato presidencial, o pronome indefinido pode ser descartado: mais da metade (48) dos 85 nomes já encaminhados pela Casa Branca para a sabatina de confirmação não são diplomatas de carreira.
E segundo levantamento do Center for Public Integrity, um instituto de jornalismo investigativo de Washington, 23 desses indicados são contribuintes que arrecadaram mais de US$ 16,1 milhões para a campanha democrata desde 2007.
Semanas atrás, quatro futuros embaixadores dessa safra se apresentaram perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado. A leitura de seus depoimentos é um espanto.
O empresário e consultor político Noah Bryson Mamet, doador de mais de US$ 1,3 milhão, fora indicado para Buenos Aires. Trata-se de um posto de considerável sensibilidade político-diplomática regional, turbinada pela crise financeira atual e pelo latente confronto com a Grã-Bretanha envolvendo as Malvinas.
Sem falar nas tensas relações de Cristina Kirchner com a imprensa e no alinhamento de seu governo com países do continente cujas políticas a Casa Branca considera indigestas. Ou seja, um posto que deveria ser ocupado por alguém com interesse e conhecimento sólido do que o espera. E que navegasse, nem que fosse superficialmente, pelo idioma local.
Só que o californiano Mamet, parceiro de golfe do presidente, não fala espanhol. Tampouco pisou uma só vez em solo argentino em seus 44 anos de vida. “Mas já viajei bastante pelo mundo inteiro, apenas ainda não tive a oportunidade de ir até lá (a Argentina), esclareceu. Dá para imaginar como essa declaração foi bem recebida pelos portenhos.
O veterano senador democrata Max Baucus, de 72 anos e seis mandatos parlamentares, foi inquirido com mais simpatia por seus pares. Ainda assim, houve desconforto com sua resposta à pergunta sobre o que teria levado a China a mexer no mapeamento da zona de defesa aérea do país. “Não sou exatamente um especialista em China”, admitiu, “mas estou convencido de que o povo chinês é tão orgulhoso quanto nós americanos somos”.
Pelo menos Baucus já fizera oito viagens à China e tem farta experiência em complexas negociações de comércio exterior. Foi confirmado na hora.
A produtora de televisão Colleen Bell, do seriado “The bold and the beautiful” (audiência estimada em 26,2 milhões de telespectadores e 31 prêmios Daytime Emmy, diz seu perfil na internet), precisará de algum tempo para se enfronhar nas profundezas da cultura magiar. Ela foi indicada para a embaixada na Hungria.
Patronesse de várias entidades culturais e doadora de US$ 800 mil para a primeira campanha de Obama, Bell teve a infelicidade de ser inquirida pelo senador republicado John McCain, que, no dia da sabatina, estava mais cruel do que seus captores do Vietnam do Norte. O senador quis saber da loura de 47 anos quais eram os interesses estratégicos dos Estados Unidos na Hungria.
“Bem, temos interesses estratégicos, no sentido de interesses-chave na Hungria”, começou Bell, enfileirando palavras como blocos de lego. “Acredito que nossas prioridades-chave consistem em melhorar a relação de segurança e também a implementação da ordem e a promoção de oportunidade de negócios, o aumento de comércio...”
McCain a interrompeu, impiedoso: “Gostaria de perguntar novamente quais nossos interesses estratégicos na Hungria.”
A enfileirada de palavras também prosseguiu, no piloto automático: “Trabalhar em colaboração, como aliados da Otan, trabalhar para promover e proteger a segurança para ambos os países e para o mundo e prosseguir no trabalho comum em prol da causa dos direitos humanos em todo o mundo, reforçar este lado de nossa relação e, ao mesmo tempo, manter e prosseguir com difíceis negociações que venham a se tornar necessárias.”
“Resposta definitiva”, concluiu McCain, sádico.
A tortura só não se prolongou porque na mesma tarde tinha outro nomeado para ser ouvido.
George Tsunis, fundador e presidente da cadeia de hotéis Chartwell, de Nova Jersey, contribuíra com mais de US$ 1,3 milhão para a eleição democrata e fora brindado com a Embaixada da Noruega. Talvez pela surpresa, sequer teve tempo de recapitular o curso básico de História Universal e passou a falar no que fará o “presidente” da nação nórdica. A Noruega, como se sabe, é uma monarquia constitucional de regime parlamentarista.
Diante de um elenco desses para representá-los mundo afora, os americanos tiveram um motivo a mais para chorar a morte de sua menina prodígio esta semana. A republicana Shirley Temple Black, gordota assumida e livre dos cachos infantis que a imortalizaram no cinema, foi pinçada para embaixadora dos Estados Unidos em dois países sem jamais ter pensado em ser diplomata de carreira.
Mas era séria, aplicada e soube usar seu status de celebridade adorada para movimentar programas assistenciais de grande vulto na África. Primeiro, como membro da delegação americana junto à ONU. Depois como embaixadora em Gana. Por fim, na Tchecoslováquia dos últimos e decisivos anos da Guerra Fria. Não se conhece uma só gafe cometida por ela em seus postos diplomáticos.
Recebeu de Henry Kissinger três qualificativos: “Muito inteligente, muito dura, muito disciplinada.” Ou seja, não precisa ser de carreira. Basta saber o que faz.
Isso também vale para quem faz a escolha.

Dorrit Harazim é jornalista.

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