Qual o mistério do encanto da bunda? Uma conjugação de abundantes e
harmônicos traços curvilíneos, relevo altiplano, textura sedosa e volume macio
definem essa organização arquitetônica primorosa que resulta na obra prima
maior da natureza, concedida por Deus ao homem. Ou melhor dito, à mulher, porquanto
é exclusivamente a feminina que detém os primorosos atributos. A vitória
definitiva da curva sobre a reta. Da dualidade sobre a ‘monotonia’. A negação
do caos e da entropia. O ápice da criação divina. Afirmação inequívoca da
existência de Deus e do Diabo, aqui pactuados e configurados numa mesma
concepção temporal. Mistura de pureza com profanação. De carnalidade com
divindade.
Ainda que desprovida de intenções malévolas, a perversidade faz parte de
sua natureza, pelo mero ato de existir, independente de mostrar-se aos olhos.
Quando revelada, provoca pensamentos libidinosos pelo que é. Quando oculta,
provoca-os pelo que poderia ser.
Tal como a Lua, em que parece inspirar-se, inclusive na forma, a bunda
permanece inatingível, mesmo após ser explorada e violada por mãos impuras. É
feita para ser admirada e desejada . Jamais possuída.
Morfologicamente, poderia ser considerada prolongamento tanto dos
membros como do tronco. Harmoniza-se anatomicamente com ambos. Elemento indissociável
da perfeita composição corporal que se molda, num acabamento irretocável. O
detalhe que se sobrepõe com tamanha imponência à totalidade que a subjuga. Os
demais componentes passam a ser adereços a adornar-lhe, em face da suntuosidade
desbundante de sua presença imperiosa, perturbadora, retumbante.
O movimento das pernas ao andar provoca-lhe reflexivamente um balançar
hipnotizante que faz do simples ato de caminhar uma sinfonia épica vertida pela
alma carioca em loas pela bossa nova e em carniça pelo funk. O fato é que, de
um ou de outro jeito, todos se rendem seduzidos ante o gingado que ela
despretensiosa ou maliciosamente proporciona.
Paradoxalmente, essa obra prima da criação presta-se ao degradante
ofício de abrigar o canal de saída do material rejeitado pelo organismo. É a
porta do fundo do corpo. A garagem, a saída de serviço, onde têm lugar as inconfessáveis
atividades submundanas. Algo que, dada a espécie de função fisiológica que
exerce, deveria ser a parte mais repugnante do corpo, é contraditoriamente sua porção
mais exuberante. Como Deus fez essa obra prima e lhe deu uma atribuição tão
ignóbil? Mistérios da obra divina que, como limitados seres mortais, não nos é
permitido compreender, parecendo revestido
de incomensurável despropósito.
A bunda, ainda que com predicados tão soberbos, presta-se com resignação
a tais papéis aviltantes. Não protesta, não reclama, não chia. Nem mesmo peida.
Tem a humildade própria das grandes
eminências. Aceita sua sina, indiferente aos olhos e aos julgamentos de todos, conservando
seus encantos ocultos no íntimo das calcinhas que a guardam.
Segue ela seu caminho, rebolando pelas estradas. Semeando
fantasias, arrebatando corações, afogando gansos...
by Sergio Sayeg
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