Temer diz que ganhou presente de Natal. E foi você, trabalhador, quem deu
Leonardo Sakamoto
''O governo acaba de ganhar um belíssimo presente de Natal'', afirmou Michel Temer ao tratar da proposta de reforma trabalhista.
O presente não é a reforma em si, mas o fôlego que seu grupo político acredita ter ganhado para continuar ocupando o Palácio do Planalto com a divulgação da medida.
Fôlego dado por parte do empresariado que o ajudou a chegar lá com a condição de que reduzisse a proteção ao trabalhador (reformas trabalhistas e previdenciária em andamento) e garantisse que a fatura da crise econômica pesasse mais sobre o trabalho do que sobre o capital (a já aprovada PEC do Teto, que congela gastos públicos, como saúde e educação, por 20 anos, por exemplo). Ações que, não se enganem, já estavam sendo entregues pelo PT, mas em menor velocidade e quantidade do que a desejada por eles por conta da pressão de suas bases.
O impacto do presente dado pelo governo Temer a uma parcela do PIB brasileiro, recebendo em troca o direito de permanecer onde está, vai se fazer sentir nas próximas gerações de trabalhadores.
É claro que o país precisa de uma atualização de toda a legislação que regula a relação capital e trabalho e não apenas da CLT. Mas, primeiro, o Congresso Nacional deveria reunir todas as leis, instruções normativas, regras, enfim, e simplifica-la, retirando redundâncias e facilitando a vida do trabalhador e do empresário. E só depois buscar os pontos de consenso para começar uma profunda discussão.
A principal proposta, do ''negociado sobre o legislado'', beneficia parte do empresariado e parte dos sindicatos, que terão mais poder para se sobrepor ao que diz a lei. Mas dar mais poder a sindicatos sem repensar a estrutura sindical brasileira é pedir para que apareçam mais caos de corrupção e de negociatas entre supostos representantes dos interesses dos trabalhadores e patrões.
Em outra circunstância, uma greve geral começaria a ser desenhada para evitar mudanças sem um amplo debate nacional. Mas os trabalhadores seguem anestesiados com a política e desesperados com a manutenção do próprio emprego frente às chantagens que circulam diariamente – de que ou se retiram direitos ou o Brasil vai arder no mármore do inferno.
Ao mesmo tempo, essa população não se reconhece diante de deputados e senadores que têm vontade própria e não representam ninguém além de seu próprio umbigo e do das empresas que os alugaram através de doações de campanha e caixa 2.
A classe trabalhadora sabe que está sendo passada para trás – o que pode ser visto pelas pesquisas de opinião. E não há organização que leve à mobilização em massa, fruto deste momento em que antigas lideranças perderam a legitimidade e seu espaço foi ocupado pelo vácuo do ''salve-se quem puder''.
Por isso, trago uma historinha de Natal.
Maria deu à luz, sob o olhar insuspeito de uma vaca e um jegue – figurante sempre presente nessas ocasiões há quase dois mil anos. José acompanhava a cena de perto, amparado pelas paredes de barro e um cigarro de palha. A fumaça esbranquiçada fugia pela porta e fundia-se à paisagem queimada de sol. E a pele do bebê à lavoura, que morreu ainda no pé por carência d`água. Mal presságio… Ao contrário da outra criança – do outro José com a outra Maria – não recebeu reis, muito menos presentes.
Os anos se passaram e ela cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu. O pai, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarréia, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro. Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado, prática comum por aquelas bandas.
Ouvi essa história do próprio José, ao fazer uma reportagem no sertão de Alagoas, há alguns anos. A Alagoas de Collor e de Renan. Mas também, de certa forma, dos ditadores do período militar, de Sarney, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer. Adoramos culpar as velhas oligarquias nordestinas, mas esquecemos que elas deram sustentação a todos os governos.
Assim como eles, muitos Josés e muitas Marias ainda enterram seus filhos pelo Nordeste brasileiro – coisa que não deveria acontecer – pais não deveriam enterrar seus filhos. No rádio e na TV, ainda chegam notícias de que o motivo disso tudo são as secas, que castigam o sertão de tempos em tempos, como a que assolou a região este ano. Mas os simples cordéis, pendurados nos varais das feiras livres nos finais de semana, contam mais a verdade.
Remexendo em um deles, achei um que exemplifica: “Doutor, vixe, água não é o problema! / Aqui com a seca e com jeitinho nós se arresolve / O que dói mesmo e é difícil de entender / É a falta de terra, disso ninguém se comove / Falta não, me corrijo antes de tudo / Tem muita por aí, mas é do coroné o seu uso”.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil tornou-se exemplo global ao reduzir o número de pessoas subnutridas. Os programas sociais de distribuição de renda e suas ações correlatas, programas de Saúde da Família, além das atividades de organizações da sociedade civil como a Pastoral da Criança, reduziram a fome por aqui. Sem contar a geração de empregos e a própria estabilidade econômica da última década. Contudo, apesar da quantidade de pessoas em situação de inseguração alimentar caiu bastante, ainda temos milhões de subnutridos.
A cantilena é antiga, mas garantir terra e, principalmente, condições de produção, com apoio técnico, irrigação e financiamento, e facilitar o escoamento das mercadorias é uma das soluções poderosas não pontuais para o problema da pobreza extrema na região rural, por exemplo. Ou seja, distribuição de riqueza – ideia que também vale para as áreas urbanas.
Por isso, dói ver medidas sendo apresentadas e aprovadas indo no sentido contrário e concentrando mais riqueza, ao jogar a conta da crise apenas nas costas dos mais pobres, ceifando direitos trabalhistas ou investimentos em gastos públicos. Enquanto isso, dividendos recebidos de empresas não são taxados, muitos menos grandes fortunas ou grandes heranças, e o Imposto de Renda não é progressivo a ponto de morder 30%, 40% de quem é rico e pode pagar mais.
Ou seja, as lojas de alto luxo de Rio, São Paulo e Brasília continuarão apinhadas de gente no mês de dezembro. E os mais pobres reduzirão suas ceias de Natal nos próximos anos, tendo que escolher entre comer durante a semana e comprar um presente para os filhos.
Essas famílias pobres podem até ser ignoradas pelo “céu”, que não manda a chuva, mas se estrepam mesmo é com a ação direta do pessoal de carne e osso (que está de olho em suas terras ou sua força de trabalho), com a ação perversa do Estado e com a complacência de muitos de nós.
Sem contar o fato de que lucramos sim com essa estrutura de exploração. Ou você acha que os produtos baratos que nós consumimos são socialmente limpos com esse exército de trabalhadores temporários superexplorados que se esfolam aqui e ali?
Perdoem-me. O objetivo deste texto não é fomentar a culpa em um dia de festas – apesar de ser um sentimento bastante presente entre muitos cristãos e que não leva a lugar nenhum. Mas lembrar que comemorar significa também ''lembrar junto''. Precisamos ter em mente que nossa caminhada é longa, mas não fará muito sentido se chegarmos lá sozinhos. Aliás, ninguém chegará lá sozinho, pois, desconfio, que ou o país terá que ser para todos ou não haverá nada para que os ''vencedores'' aproveitem o butim ao final.
Enfim, Feliz Natal às mulheres e homens que não se dizem ''de bem'' e não ficam apenas na boa vontade.
O presente não é a reforma em si, mas o fôlego que seu grupo político acredita ter ganhado para continuar ocupando o Palácio do Planalto com a divulgação da medida.
Fôlego dado por parte do empresariado que o ajudou a chegar lá com a condição de que reduzisse a proteção ao trabalhador (reformas trabalhistas e previdenciária em andamento) e garantisse que a fatura da crise econômica pesasse mais sobre o trabalho do que sobre o capital (a já aprovada PEC do Teto, que congela gastos públicos, como saúde e educação, por 20 anos, por exemplo). Ações que, não se enganem, já estavam sendo entregues pelo PT, mas em menor velocidade e quantidade do que a desejada por eles por conta da pressão de suas bases.
O impacto do presente dado pelo governo Temer a uma parcela do PIB brasileiro, recebendo em troca o direito de permanecer onde está, vai se fazer sentir nas próximas gerações de trabalhadores.
É claro que o país precisa de uma atualização de toda a legislação que regula a relação capital e trabalho e não apenas da CLT. Mas, primeiro, o Congresso Nacional deveria reunir todas as leis, instruções normativas, regras, enfim, e simplifica-la, retirando redundâncias e facilitando a vida do trabalhador e do empresário. E só depois buscar os pontos de consenso para começar uma profunda discussão.
A principal proposta, do ''negociado sobre o legislado'', beneficia parte do empresariado e parte dos sindicatos, que terão mais poder para se sobrepor ao que diz a lei. Mas dar mais poder a sindicatos sem repensar a estrutura sindical brasileira é pedir para que apareçam mais caos de corrupção e de negociatas entre supostos representantes dos interesses dos trabalhadores e patrões.
Em outra circunstância, uma greve geral começaria a ser desenhada para evitar mudanças sem um amplo debate nacional. Mas os trabalhadores seguem anestesiados com a política e desesperados com a manutenção do próprio emprego frente às chantagens que circulam diariamente – de que ou se retiram direitos ou o Brasil vai arder no mármore do inferno.
Ao mesmo tempo, essa população não se reconhece diante de deputados e senadores que têm vontade própria e não representam ninguém além de seu próprio umbigo e do das empresas que os alugaram através de doações de campanha e caixa 2.
A classe trabalhadora sabe que está sendo passada para trás – o que pode ser visto pelas pesquisas de opinião. E não há organização que leve à mobilização em massa, fruto deste momento em que antigas lideranças perderam a legitimidade e seu espaço foi ocupado pelo vácuo do ''salve-se quem puder''.
Por isso, trago uma historinha de Natal.
Maria deu à luz, sob o olhar insuspeito de uma vaca e um jegue – figurante sempre presente nessas ocasiões há quase dois mil anos. José acompanhava a cena de perto, amparado pelas paredes de barro e um cigarro de palha. A fumaça esbranquiçada fugia pela porta e fundia-se à paisagem queimada de sol. E a pele do bebê à lavoura, que morreu ainda no pé por carência d`água. Mal presságio… Ao contrário da outra criança – do outro José com a outra Maria – não recebeu reis, muito menos presentes.
Os anos se passaram e ela cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu. O pai, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarréia, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro. Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado, prática comum por aquelas bandas.
Ouvi essa história do próprio José, ao fazer uma reportagem no sertão de Alagoas, há alguns anos. A Alagoas de Collor e de Renan. Mas também, de certa forma, dos ditadores do período militar, de Sarney, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer. Adoramos culpar as velhas oligarquias nordestinas, mas esquecemos que elas deram sustentação a todos os governos.
Assim como eles, muitos Josés e muitas Marias ainda enterram seus filhos pelo Nordeste brasileiro – coisa que não deveria acontecer – pais não deveriam enterrar seus filhos. No rádio e na TV, ainda chegam notícias de que o motivo disso tudo são as secas, que castigam o sertão de tempos em tempos, como a que assolou a região este ano. Mas os simples cordéis, pendurados nos varais das feiras livres nos finais de semana, contam mais a verdade.
Remexendo em um deles, achei um que exemplifica: “Doutor, vixe, água não é o problema! / Aqui com a seca e com jeitinho nós se arresolve / O que dói mesmo e é difícil de entender / É a falta de terra, disso ninguém se comove / Falta não, me corrijo antes de tudo / Tem muita por aí, mas é do coroné o seu uso”.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil tornou-se exemplo global ao reduzir o número de pessoas subnutridas. Os programas sociais de distribuição de renda e suas ações correlatas, programas de Saúde da Família, além das atividades de organizações da sociedade civil como a Pastoral da Criança, reduziram a fome por aqui. Sem contar a geração de empregos e a própria estabilidade econômica da última década. Contudo, apesar da quantidade de pessoas em situação de inseguração alimentar caiu bastante, ainda temos milhões de subnutridos.
A cantilena é antiga, mas garantir terra e, principalmente, condições de produção, com apoio técnico, irrigação e financiamento, e facilitar o escoamento das mercadorias é uma das soluções poderosas não pontuais para o problema da pobreza extrema na região rural, por exemplo. Ou seja, distribuição de riqueza – ideia que também vale para as áreas urbanas.
Por isso, dói ver medidas sendo apresentadas e aprovadas indo no sentido contrário e concentrando mais riqueza, ao jogar a conta da crise apenas nas costas dos mais pobres, ceifando direitos trabalhistas ou investimentos em gastos públicos. Enquanto isso, dividendos recebidos de empresas não são taxados, muitos menos grandes fortunas ou grandes heranças, e o Imposto de Renda não é progressivo a ponto de morder 30%, 40% de quem é rico e pode pagar mais.
Ou seja, as lojas de alto luxo de Rio, São Paulo e Brasília continuarão apinhadas de gente no mês de dezembro. E os mais pobres reduzirão suas ceias de Natal nos próximos anos, tendo que escolher entre comer durante a semana e comprar um presente para os filhos.
Essas famílias pobres podem até ser ignoradas pelo “céu”, que não manda a chuva, mas se estrepam mesmo é com a ação direta do pessoal de carne e osso (que está de olho em suas terras ou sua força de trabalho), com a ação perversa do Estado e com a complacência de muitos de nós.
Sem contar o fato de que lucramos sim com essa estrutura de exploração. Ou você acha que os produtos baratos que nós consumimos são socialmente limpos com esse exército de trabalhadores temporários superexplorados que se esfolam aqui e ali?
Perdoem-me. O objetivo deste texto não é fomentar a culpa em um dia de festas – apesar de ser um sentimento bastante presente entre muitos cristãos e que não leva a lugar nenhum. Mas lembrar que comemorar significa também ''lembrar junto''. Precisamos ter em mente que nossa caminhada é longa, mas não fará muito sentido se chegarmos lá sozinhos. Aliás, ninguém chegará lá sozinho, pois, desconfio, que ou o país terá que ser para todos ou não haverá nada para que os ''vencedores'' aproveitem o butim ao final.
Enfim, Feliz Natal às mulheres e homens que não se dizem ''de bem'' e não ficam apenas na boa vontade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário