As aparições de Fátima e mais uma história fantástica
Anúncio no Diário de Notícias previa Fátima dois meses antes
Um
anúncio publicado no DN oito semanas antes da primeira aparição na Cova
da Iria anunciava acontecimentos extraordinários para o dia 13 de maio
de 1917. Leia a história dois anos depois do centenário. (Publicado originalmente a 10 de março de 2017)
Quem
lesse a edição do Diário de Notícias do dia 10 de março de 1917
repararia que na página 4, na 9ª coluna, encontrava-se um anúncio pago
tão inesperado como estranho. Como título tinha um número em destaque:
135917. Mas no texto curto continha algo que interessava muito às
milhares de famílias que tinham os filhos no campo de batalha da
Flandres, onde integravam os exércitos em luta na terrível Grande
Guerra, cuja maioria morreria vítima de gaseamento. O texto do anúncio
referia: "Não esqueças o dia feliz em que findará o nosso martírio. A
guerra que nos fazem terminará." O
anúncio poderia ter qualquer interpretação se dois meses e três dias
depois, a 13 de maio, não tivesse tido lugar a primeira das seis
alegadas aparições da Nossa Senhora aos três pastorinhos. Se dúvidas
houvesse, na manhã do próprio dia dos acontecimentos sobrenaturais da
Cova da Iria foi publicado uma notícia no Jornal de Notícias, onde se
reforçava a mensagem que antes saíra no DN. Essa notícia é escrita a
partir de um postal enviado à redação, com data de 11 de maio de 1917,
cujo texto deixa os redatores tão estupefactos que colocam como título
"Revelação sensacional" e reproduzem o seu aviso: "No dia treze do
corrente, hade dar-se um facto, a respeito da guerra, que impressionará
fortemente toda a gente."
Entretanto,
também nos jornais O Primeiro de Janeiro e Liberdade foram publicados
dois anúncios com as mesmas previsões de acontecimentos inesperados para
o dia 13 de maio de 1917, a data em que o país foi surpreendido pela
visão da Virgem Maria por três meninos de 10, 9 e 7 anos,
respetivamente, Lúcia, Francisco e Jacinta, no local onde hoje se
encontra o Santuário. Acontecimento sobrenatural que está prestes a
comemorar o seu centenário e na qual participa o próprio papa
Francisco, por desejo expresso seu, devoto de Maria e que consagrou nos
dias imediatos à sua eleição o pontificado à Nossa Senhora do Rosário de
Fátima. Qual é o significado da publicação de um anúncio que
preveria o fim da Grande Guerra, uma das grandes linhas mestras da
Mensagem de Fátima e que a Nossa Senhora terá comunicado aos pastorinhos
estar para breve? Mesmo que essa "declaração" divina estivesse errada
pois a guerra só terminou um ano depois, tal não evitou que nos cinco
meses seguintes muitos peregrinos se deslocassem de imediato para Fátima
nos dias 13, pois disse Lúcia que a Senhora deixara claro que
regressaria consecutivamente até 13 de outubro, nem que surgissem
comerciantes a vender no local postais com imagens dos jovens
portugueses na Guerra. Uma autoria indesejável Os
responsáveis pela colocação destes anúncios foram os centros de
espiritismo de Lisboa e do Porto, uma atividade muito em voga à época.
Centros onde se reuniam pessoas de várias classes para receber mensagens
do além. Diga-se que a inicial C. do anúncio publicado no DN deverá
pertencer a Carlos Calderon, um cantor muito famoso nessa altura, entre
outras coisas fundador da Sociedade Portuguesa de Autores, e que fazia
parte de uma das casas espíritas mais importante da capital. "António",
que enviara o postal para o JN, também era figura muito conhecida no
Porto. Ora, ambos forram encarregados de deixar registado nos
principais jornais da época o que os "espíritos" lhes tinham comunicado
em várias sessões por todo o país, como era também o caso de um grupo
muito importante que se reunia em Portimão. A razão era simples, evitar
que se duvidasse da comunicação do além após os acontecimentos para o
dia 13 de maio terem tido lugar. É o que se pode ler da "Acta" do
centro de Lisboa, cujas decisões foram entregues ao referido espírita
Carlos Calderon para que desse conhecimento público do que aconteceram
nessas várias sessões. Uma "Acta" onde se escreve que "no dia 7 de
Fevereiro de 1917 estando nós reunidos para trabalhos psíquicos e
estudos ocultos, a determinada altura dos trabalhos, um dos assistentes
pediu papel e lápis e automaticamente escreveu da direita para a
esquerda uma comunicação (...). Nessa comunicação afirma-se que a data
do 13 de Maio será de grande alegria para os bons espíritas de todo o
mundo." A decisão que levou à publicação do anúncio deve-se, segundo a
"Acta", ao seguinte: "Discutiu-se a comunicação recebida e resolveu-se:
"- Que a data de 13 de Maio ficasse exarada num jornal , para que no
futuro não pudessem haver dúvidas sobre a veracidade do facto sucedido." Coincidência para o Santuário Assim
sendo, foi escolhida a edição do DN de 10/03/1917 para imprimir o
registo da comunicação;e dada ordem para que "se adquirissem na redação
do jornal 35 exemplares", e que se "seguisse com a máxima atenção o
desenvolvimento deste assunto, coligindo todos os dados, artigos, etc.
que possam conduzir-nos à verdade". Visto este anúncio à distância
de cem anos, num momento em que o Santuário de Fátima comemora a sua
longevidade, questionaram-se os responsáveis sobre qual o entendimento
da referida previsão na edição do jornal. Considera o diretor do Serviço
de Estudos e Difusão, Marco Daniel Duarte, que o enunciado que no dia
10 de março de 1917 aparece na p. 4 "foi associada por alguns
investigadores ao acontecimento das aparições de Fátima, provavelmente
pela coincidência de uma numeração que antecede esse enunciado e que
coincide com uma possível leitura da data em que, segundo o testemunho
das três crianças Francisco, Jacinta e Lúcia, acontece a aparição da
Virgem Maria em Fátima (135917)." No entanto, para o responsável, "toda a
formulação leva a concluir que se trata de uma linguagem típica da
cultura espírita, tema que se encontra muito pouco estudado pela
historiografia em Portugal e que, por isso, não tem sido contextualizada
de uma forma que permita conclusões além das que se firmam na
coincidência da hipotética data." Destaca ainda o Santuário que
"para a história das mentalidades, seria importante perceber este tipo
de frases, mais ou menos comuns nos jornais dos inícios do século XX, no
contexto do surgimento destas correntes de pensamento que ao longo do
século XIX e inícios do XX também ganharam adeptos em Portugal", mas não
deixa de alertar para o facto de que "na frase não se refere o topónimo
Fátima, nem sequer há referência a um qualquer cenário de mariofania.
Em linguagem de pendor enigmático, fala-se do fim do martírio e do
terminar de uma guerra que pode ser ou não conotada com o grande
conflito que se vivia à escala mundial (a expressão é "a guerra que nos
fazem terminará")". Apesar do distanciamento do Santuário sobre o
significado do anúncio, pergunta-se a Marco Daniel Duarte se a
"previsão" credibiliza ou não os acontecimentos no entender da Igreja.
Para o diretor, o discurso oficial da Igreja acerca das aparições de
Fátima ignora este caso: "Pode dizer-se que esta tem sido uma temática
que não se vê considerada, porquanto a mundividência preconizada pela
teologia cristã não é compatível com o discurso do pensamento espírita. A
falta de elementos que relacionem o enunciado publicado no DN a Fátima
levou a que oficialmente não se tenha dado importância a esta mensagem
redigida no modo imperativo. Ela tem sido, sobretudo, evocada por
investigações que pretendem explicar as aparições a partir do conceito
de paranormalidade e da explicação ovniológica, linha de investigação
que, no universo dos estudos sobre Fátima, constitui uma percentagem
muito reduzida." Historiador e a construção E
o que dizem os historiadores sobre este anúncio? O investigador Luís
Filipe Torgal, autor do ensaio O sol bailou ao meio-dia - A criação de
Fátima, e estudioso da I República, faz notar que quando se consultam os
jornais de 1916 a 1918 "eles estão inundados de questões relacionadas
com a Guerra" e que nessa altura "surgem dezenas de notícias de
aparições que ocorrem um pouco por todo o país e cuja mensagem está
associada à Guerra. Aliás, 1917 é um ano especial porque em janeiro
parte o Corpo Expedicionário Português para a Flandres". Não deixa
de sublinhar que "a Guerra é a essência da Mensagem de Fátima, tudo o
resto é uma construção posterior, como é o caso da mensagem
anti-comunista, que só se sabe nos anos 30". O historiador não encontra
uma explicação para o anúncio: "Vejo-o, registo-o e integro-o como mais
uma entre as diversas notícias sobre a Guerra, mas mais do que isso não.
É difícil retirar daí uma interpretação e creio que ninguém o
conseguirá." Em conclusão, afirma: "É uma coincidência e o mundo está
cheia delas." (Publicado originalmente a 10 de março de 2017)
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