Santa Cruz. A saga da família que Bolsonaro atacou
Após
as acusações do presidente, enquanto cortava o cabelo em direto na
internet, sobre a causa do desaparecimento de um preso político na
ditadura militar há 45 anos, a palavra impeachment voltou a ouvir-se no Brasil, esquerda e direita uniram-se em repúdio e até o Supremo quer explicações.
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"Nós
chegamos a casa muito felizes, muito contentes, chamamos o Felipe e
dissemos: "Felipe, o seu pai vai voltar, ele estava só viajando". Hoje
acho que foi um erro". A frase, de 7 de agosto de 1974, retirada
do livro "Onde Está o Meu Filho", é de Ana, viúva do desaparecido da
ditadura militar Fernando Santa Cruz e mãe de Felipe Santa Cruz, o hoje
bastonário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que, depois de
desagradar Jair Bolsonaro, ouviu o presidente da República, em
retaliação, insinuar que sabia o que tinha acontecido ao seu pai. Aquele
momento de felicidade e contentamento do dia 7 de agosto de 1974 foi
também um dos raros sopros de esperança da família ao longo de 45 anos
de desespero kafkiano, por entre visitas a quartéis, hospitais,
cemitérios e encontros com autoridades. Fernando Augusto
de Santa Cruz Oliveira, nascido no Recife em 1948, quinto de dez filhos
de dr. Lincoln, médico, e Dona Elzita, começou a militância política
contra o regime na Igreja Nossa Senhora de Fátima, como membro da Ação
Popular Marxista Leninista, braço da juventude católica, na capital de
Pernambuco. Em
1967 foi preso pela primeira vez durante um protesto e em 1969, após a
invasão da polícia a sua casa, só não foi detido porque Dona Elzita
distraiu os agentes e ele escapou para o apartamento dos vizinhos. Mudou-se,
na sequência, para o Rio de Janeiro, onde se matriculou em direito.
Mais tarde, já casado com Ana, desde 1970, e já pai de Felipe, o hoje
bastonário, desde 1972, encontrou emprego como funcionário público em
São Paulo. "A relação do Fernando com o Felipe era muito bonita,
muito forte, ele era um pai para todas as tarefas, trocar fraldas, dar
biberão, acordar de noite, levar para a creche, trazer da creche, como
eu trabalhava o dia inteiro, quando eu chegava, o Felipe já tinha tomado
a sopa e estava dormindo", contou Ana. "Eu
sentia ciúmes: dizia que o Felipe gostava mais do Fernando do que de
mim, o que me dói é que hoje, para o Felipe, o Fernando seja só um nome
na memória, uma fotografia na parede". Em 1974, a família
decidiu passar o Carnaval no Rio, onde Fernando tinha encontro marcado
com o amigo de infância Eduardo Collier Filho, a viver na
clandestinidade há já cinco anos. No dia 23 de fevereiro, sábado, saiu
de t-shirt quadriculada, calções amarelos e chinelos e deixou uma
recomendação, a última recomendação: "Se eu não voltar até às 6 da tarde
é porque fui preso". Daquele dia, que para os Santa Cruz
só acabou 45 anos depois, sabe-se apenas que o apartamento de Collier,
em Copacabana, foi invadido pela polícia, conforme relatou o porteiro do
prédio, e que os dois terão sido detidos numa esquina, apesar de
Fernando, 26 anos, não ter sido jamais vinculado em nenhum relatório da
ditadura a qualquer ato violento ao longo da vida, de ter morada fixa e
conhecida, de ser estudante de direito e de ser um funcionário público
de personalidade descrita por toda a gente como pacata. Após
dias de buscas desesperadas, a família recebeu um telefonema anónimo a
13 de março a dizer que os dois estavam no DOI-Codi, órgão semelhante à
PIDE portuguesa, do II Exército, comandado até janeiro daquele ano pelo
temido torturador Brilhante Ustra. Lá, um guarda prisional que respondia
pela alcunha de "Marechal" recebeu as malas de roupas dos familiares
mas mandou os Santa Cruz voltarem quatro dias depois, um domingo, à hora
das visitas. No domingo, o chefe de serviço do II Exército, que
se apresentou como "Dr. Homero", negou a presença de Fernando e Eduardo
no local e devolveu as malas. Um detalhe, no entanto,
chamou a atenção da família: "Marechal", na hora de receber malas com
roupas para Fernando Santa Cruz, acrescentou Oliveira ao formulário, sem
que ninguém mencionasse o último nome do detido, sinal de que sabia de
quem se tratava e de que ele estaria mesmo ali. Anos
depois, investigações de parentes de mortos e desaparecidos revelaram
que o "Marechal" e o "dr. Homero" que atenderam os Santa Cruz constavam
na lista dos mais notórios torturadores do regime militar. A 26
abril de 74, um dia depois da Revolução dos Cravos portuguesa, um
representante da Cruz Vermelha disse às famílias que Santa Cruz e
Collier estavam presos, de facto, e gozavam de boa saúde.
As famílias enviaram-lhes cartas, cujas respostas jamais chegariam. E
em meados de maio, a mesma Cruz Vermelha parou de dar notícias, para
desalento de todos. Chegou então o tal dia 7 de agosto em que
os Santa Cruz voltaram a casa "muito felizes, muito contentes" e
chamaram Felipe para lhe dizer que o pai só estava "viajando" e "ia
voltar". Em audiência, marcada pelo bispo Paulo Evaristo Arns, com o
general Golbery do Couto e Silva, ministro do Casa Civil do presidente
Ernesto Geisel, ouviram da boca do poderoso mandatário a garantia de que
o caso de Fernando tinha solução e de que poderiam ir para casa
descansados que tudo seria resolvido. Não foi. Dona
Elzita, que passou a liderar a saga da busca por informações de
Fernando, que o diga: daquela data até junho, quando morreu aos 105
anos, percorreu quartéis, cemitérios e manicómios, fez peregrinações ao
Congresso Nacional, marcou encontros com autoridades, suplicou por
respostas de organizações internacionais, de presidentes do Brasil e até
dos Estados Unidos e manteve por todos os anos a mesma morada e a mesma
linha telefónica na esperança de um dia ouvir do outro lado a voz do
filho. "Hei de vê-lo voltar, o meu doce consolo, o meu
filhinho, passam-se anos e o véu do esquecimento baixando sobre todas as
coisas tudo apaga, menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o
coração esmaga", costumava declamar. Filipe,
filho de Fernando, neto de Dina Elzita e hoje líder da OAB, escreveu
aos 11 anos, em dezembro de 1983, um texto sobre o pai. "Todo o
mundo poderia pensar que eu escreveria uma carta triste mas não, eu
escreverei uma carta dizendo tudo o que eu acho. Eu tenho ideia de como
seria o meu pai, devia ser um homem que lutava contra a ditadura do
presidente [Emílio Garrastazu] Médici, que foi uma das que mais teve
repressão, e morreu como muitos que tentaram o mesmo". Dona Elzita
chegar a contestar publicamente a declaração oficial do ministro da
justiça Armando Falcão, na televisão, de que no Brasil não havia
desaparecidos, torturados ou sequestrados e que Santa Cruz estava
clandestino; a confrontar o temido general do exército Antônio Bandeira
em reunião no terraço da casa dele; a entregar, por meio do arcebispo
Dom Helder Câmara, um pedido de ajuda ao casal presidencial americano
Jimmy e Rosalynn Carter; a investigar a informação, falsa, de que
Collier havia sido localizado em França; e a procurar Fernando, com base
noutra pista errada, num hospital psiquiátrico na região de São Paulo. Após
anos a fio de buscas em quartéis país afora, à procura de documentos, e
em cemitérios, para achar ossos do filho, Dona Elzita foi em 2007 ao
Rio de Janeiro verificar se um homem muito parecido com Fernando,
enterrado como anónimo pedinte, era o seu filho. Não era. Correu
ainda a versão de que Santa Cruz teria morrido em São Paulo e sido
enterrado numa vala clandestina no Cemitério de Perus. Dona Elzita doou
material genético em 2014, aos 102 anos, para possível identificação dos
restos mortais de Fernando dentre as mais de 1000 ossadas encontradas
em Perus mas os resultados ainda não são conhecidos. O
mistério terá sido resolvido, entretanto, por Cláudio Guerra,
ex-delegado de outro órgão de repressão da ditadura, o DOPS. Segundo
ele, Fernando teria sido levado para a Casa da Morte, como era conhecido
o centro de tortura e execução de Petrópolis e o seu corpo incinerado
na fábrica Cambahyba, no estado do Rio de Janeiro. Essas declarações,
inicialmente publicadas no livro "Memórias de Uma Guerra Suja", de
Marcelo Netto e Rogério Medeiros, foram confirmadas pelo próprio
ex-delegado, posteriormente, à Comissão da Verdade, órgão que investiga,
sem poder punitivo, violações dos direitos humanos na ditadura. Ainda
de acordo com a Comissão da Verdade, o ex-sargento do exército Marival
Chaves Dias do Canto afirmou em depoimento que havia um esquema de
encaminhamento dos presos para locais clandestinos de repressão, como a
Casa da Morte, e que Collier e Santa Cruz foram vítimas dessa operação. Em
2014, aquela comissão recomendou que no atestado de óbito de Fernando
constasse "morte não natural, violenta, causada pelo estado brasileiro" -
recomendação cumprida, finalmente, no mês passado, pela Comissão de
Mortos e Desaparecidos, órgão destinado a localizar vítimas do regime
militar. Com a certidão de óbito, a história do desaparecimento de
Santa Cruz, assim como a saga de Dona Elzita, de Felipe e restante
família, teria, 45 anos depois, um final. Não um final feliz mas, pelo
menos, um final com um pedido de desculpas do estado, um final com
respostas, um final digno. Até ao capítulo inesperado do último dia 29, quando o presidente Bolsonaro chamou a Comissão da Verdade de "balela". "Um
dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele
desapareceu no período militar, eu conto-lhe. Ele não vai querer ouvir a
verdade. Mas eu conto-lhe", disse Bolsonaro numa manhã em Brasília. À
tarde, enquanto cortava o cabelo ao vivo nas redes sociais, prosseguiu:
"Eles [o grupo de oposição ao regime a que Fernando pertencia]
resolveram sumir com o pai do Santa Cruz. Essa é a informação que eu
tive na época sobre esse episódio", declarou Bolsonaro, sem apresentar
provas do que afirmava. "Isso é o que aconteceu,
não foram os militares que mataram ele, não, 'tá? É muito fácil culpar
os militares por tudo o que acontece. Isso mudou. Mudou através do livro
"A Verdade Sufocada", o depoimento do [torturador] Brilhante Ustra". Dias
depois, trocou quatro membros da Comissão de Mortos e Desaparecidos,
nomeando dois militantes do seu partido de extrema-direita, o PSL, e
dois ex-militares, um deles com posições públicas de exaltação a Ustra. O
próprio presidente chamou o torturador de "herói nacional", na
sequência, e recebeu a viúva no Palácio do Planalto. Também dias
depois, após críticas ao presidente da esquerda à direita e da palavra
impeachment ter sido aflorada novamente no Brasil, inclusivamente pelo
subscritor do de Dilma, em 2016, o jurista Miguel Reale Júnior, o
Supremo Tribunal Federal deu um prazo de 15 dias para que o presidente
da República esclareça o que quis dizer sobre a morte de Fernando Santa
Cruz. Pode ser uma mera formalidade mas é uma formalidade
simbólica: pela primeira vez um militar, capitão na reserva no caso, é
solicitado a prestar esclarecimentos sobre crimes da ditadura perante o
Supremo do Brasil. Nota: já depois da conclusão desta
reportagem, a Petrobras, estatal petrolífera, cancelou contrato com o
escritório do advogado Felipe Santa Cruz. No ano passado, Santa Cruz
havia ganho uma causa para a empresa estimada em cinco mil milhões de
reais [cerca de 1,1 milhões de euros]. O advogado e bastonário da OAB
afirmou que se trata "claramente de uma perseguição política em curso" e
que vai pedir reparação de danos aos tribunais.
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