OPINIÃO
Bicentenário da Independência começou com coração e terminou com um pênis
Se ainda estivesse vivo nessa primeira quinzena de um setembro eleitoral, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) obrigaria seus editores a recolher seus livros para maiores averiguações.
Em meados dos anos de 1930, o pai de Chico Buarque publicou "Raízes do Brasil", uma das obras fundadoras da identidade nacional. Depois uma longa temporada na Universidade de Berlim, perdido entre os sisudos e metódicos intelectuais alemães, o autor chegou à conclusão de que, ao contrário da racionalidade dos amigos europeus, nos trópicos éramos dominados pelas emoções. Em vez de uma relação pragmática de custo e benefício e perdas e ganhos, abaixo da linha do Equador somos o que somos e fazemos o que fazemos pela raiva, pelo ódio, pela compaixão e por outros sentimentos.
Quase 100 anos depois, é fácil criticar "Raízes do Brasil". Mas clássicos precisam ser pensados dentro de seu tempo. Se fosse hoje, o inventor da expressão "homem cordial", um dos conceitos mais controversos das ciências sociais brasileiras, adaptaria as próprias ideias, depois de chegar à conclusão de que o homem brasileiro, mais do que cordial (relacionado a "coração"), é sobretudo corporal. Isto é: muitos de nós se veem mais atravessados pelos mandamentos do corpo do que do cérebro ou da emoção.
Afinal, este é o país que resumiu os festejos do bicentenário da Independência ao translado do pedaço do corpo do imperador de Portugal ao Brasil com toda pompa e ostentação reservada aos chefes de Estado. O coração, afundado numa banheira química de formol, atravessou o oceano, pousou em Brasília e foi recebido como se fosse D. Pedro 1º vivo.
O mesmo movimento aconteceu nas trapalhadas do 7 de setembro. Depois do sonolento desfile de quinquilharias das Forças Armadas na Esplanada dos Ministérios, Jair Bolsonaro, num tom de comício, achou de bom-tom convencer a multidão de que estava vivo porque a parte mais importante do seu corpo (dado que ele não tem nem cérebro, nem coração) ainda era capaz de alguns sacolejos.
Num tom de voz de quem não aguenta nem uma gripezinha, puxou um coro insosso, numa tentativa de rotular a si mesmo como um ser dotado de superpoderes. Sem contar nem com a ajuda da primeira-dama com quem compartilha as obrigações matrimoniais, gritou sozinho
- Imbrochável, Imbrochável, Imbrochável!
Nos dias que se seguiram, a imprensa resumiu o noticiário à declaração estapafúrdia do presidente. Os críticos literários e os defensores da língua entraram num debate se a grafia certa para os problemas de ereção era com x ou ch. O séquito religioso no entorno de Jair teve certeza de que ele era verdadeiramente um homem santo. No fim das contas, se eles, na mesma faixa etária de Bolsonaro, junto de outros 70% dos homens brasileiros, já não contavam com a mesma performance de outrora, ter um presidente da República com tais superpoderes era algo a se louvar de joelhos.
Meus amigos gringos me escreveram. Estavam perdidos, sem entender como, na data mais importante do calendário nacional, fomos engolidos primeiro por um coração, depois por um pênis, e deixamos de lado os símbolos nacionais.
Numa sociedade marcada pelo machismo, talvez nós brasileiros só acreditamos ser possível viver com independência, autonomia e liberdade (valores caros ao dia da Pátria) na plena potência dos órgãos sexuais ou com armas (objetos também fálicos). Sem isso, só há opressão.
Não podemos esquecer que até pouco tempo, antes mesmo de entrar na puberdade, os meninos brasileiros eram desestimulados a tomar qualquer tipo de chá, sob o "risco de amolecer o corpo". O comércio popular se mantém criativo, a inventar batidas e misturas fitoterápicas capazes de mover montanhas e ressuscitar qualquer falecido. É vasta a publicidade digital a prometer o aumento do pênis e uma ereção duradoura. E, caso nada surja efeito, caímos no riso, a cantar que a pipa do vovô não sobe mais e, apesar dos esforços, ele será passado pra trás.
No Brasil, a reputação entre os homens é medida pela conexão com o território do protagonismo e potência. E, tendo os corpos como base fundamental da expressão da masculinidade, reservamos ao pênis o papel de congregar junto a si todos esses valores. É como se acreditássemos que onde há um pinto em ação, automaticamente há um homem viril.
A ligação entre pênis e masculinidade é tão forte que, mesmo quando homens têm relações sexuais com outros homens, eles ainda se sentem homens heterossexuais e viris.
Peter Fry, antropólogo inglês, se surpreendeu com a lógica brasileira ainda no começo das suas pesquisas nos anos de 1970. Por aqui, homens casados com mulheres, em posição ativa em relações homossexuais, não titubeavam em nenhum momento em relação à própria orientação sexual.
Nas entrevistas, reforçavam que, se usavam o pinto para reforçar o papel de potentes e protagonistas na interação sexual, suas masculinidades seguiam incólumes — apesar dos pesares. Ao contrário dos passivos, que se "deixavam invadir" e não colocam em prática a imagem de homens que eram. Quem come continua homem; quem dá, não.
Nessa mesma toada, antes do papelão de 7 de setembro, no chiqueirinho dos tresloucados, Jair ostentou uma nova condecoração criada por um grupo de fãs. Orgulhoso, mostrou a todos a "medalha dos 3 Is": imorrível, incomível e imbrochável. E, feliz, reforçou: "isso não é pra qualquer um, não".
Se a morte é certa e inevitável, os homens brasileiros nutrem a fantasia de que viverão essa encarnação sem qualquer fraquejada, seja no pênis ou ânus. Esses são dois pilares fundamentais da masculinidade à brasileira e cobram muita atenção e controle. É preciso estar sempre atento e forte para içar uma potência, mesmo quando a biologia joga contra. Ou, ainda, controlar os desejos mesmo quando os especialistas se esforçam em lembrar que a próstata é uma das zonas mais erógenas — é o ponto G nos corpos dos homens.
Tais premissas servem à masculinidade troncha de Jair, mas também aos progressistas da esquerda festiva. Semanas atrás, a Revista Trip publicou um vídeo-reportagem com um clamor. Em "Libera aí: precisamos falar sobre o cu do homem hétero" a ciência se impõe. Uma série de especialistas se esforçou para provar aos homens leitores a explosão de prazer que a próstata traria para suas vidas.
Ninguém se convenceu. Organizados em grupos, argumentacm que as mulheres deveriam "parar de inventar", "se preocupar mais com a vida delas" e ameaçaram sacar o lema feminista: "calma lá: meu corpo, minhas regras".
Uma sociedade estruturada pelo controle dos corpos, pela exaltação do falo e pela crença de que tudo se resume ao sobe-e-desce dos pintos teme o amanhã, o futuro e a velhice. Entre um candidato de 76 anos com tesão de 20, o macho coronel e o capitão imbrochável, o Brasil segue mostrando que, por aqui, corpo vale mais do que cérebro.
Antes tudo fosse só emoção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário