Por favor, os não chegados aos livros, queiram ter um bom dia mais distantes ainda.
Sabe ler? Então leia Franz Kafka
Rodrigo Casarin
Não é fácil termos um exemplo claro de como a leitura impacta a nossa visão de mundo. Essa influência quase sempre acontece de forma enviesada, indireta. Constrói-se aos poucos, de livro em livro. Daí, quando o leitor se dá conta, pronto, tudo mudou. Com Kafka, que nos deixou há um século, aos 40 anos, vítima de tuberculose, o papo é outro. Em minha cabeça, não há como dissociar Praga do que encontrei na leitura de "O Castelo", um dos romances póstumos do tcheco. Por mais deslumbrante que seja a cidade, , um dos lugares mais bonitos em que já pisei, andar pelas suas ruas apertadas e a todo momento se deparar com o castelo medieval intimida quem conhece Kafka. É preciso ser leitor para sentir com toda a intensidade como aquela construção imensa, opulenta, inabalável se impõe sobre todos. Está ali, sobre nossas cabeças, o que Kafka construiu de maneira formidável em sua obra: o homem atemorizado por forças indecifráveis, tão presentes quanto misteriosas, de dimensões muito maiores do que qualquer sujeito.
A leitura de Kafka impregna na cabeça, transforma nosso imaginário. Passamos a enxergar Kafka por todos os lados. Está no incômodo com pressões descabidas de nosso cotidiano. Está quando nos sentimos encurralados num mundo hostil. Nos corriqueiros absurdos com toques surreais. Está também no que encontramos em livros de alguns outros gigantes do século 20.
Há mais gente que, por outros motivos, aponta a leitura de Kafka como decisiva. Se há um escritor do século 20 por quem tenho veneração, esse é Kafka, e reivindico ser kafkiano. Kafka disse que um livro tem de ser o machado que corta o mar gelado da nossa consciência; tomo isto como um programa de trabalho. O estranho seria um escritor como ele não ter exercido nenhuma influência
disse José Saramago já no final da vida. Sem Kafka, sem Saramago. Sem Kafka, sem parte considerável da melhor literatura produzida desde a metade do século passado. Sem Kafka, sem Gabriel García Márquez. Gabo era outro que reconhecia o tcheco como fundamental. Sacou durante a leitura de "A Metamorfose": um escritor era livre para construir no texto a sua própria noção do real. "Bastava que o autor tivesse escrito para que fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu talento e a autoridade de sua voz", escreve o colombiano em seu livro de memórias, "Vivir Para Contarla".
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