O Estado do Piauí formalizou, no ano de 2011, uma Ação Cível Originária (ACO) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), na qual contesta delimitações territoriais com o Estado do Ceará. Nessa arguição, o Piauí indica que pretende avançar sua divisa em direção ao Ceará e incorporar partes de 13 municípios cearenses. A ACO está em julgamento pelo STF, e deverá ser objeto de decisão ainda em 2024.
No escopo dessa ação judicial, o Piauí pleiteia a revisão de três áreas de litígio (Figura 1). Essas áreas contestadas totalizam aproximadamente 3 mil km² e envolvem partes de 13 municípios cearenses: Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús.
A origem dessa disputa vem de longe, de mais de 300 anos atrás, senão vejamos:
Durante uma parte do Império português no Brasil, o território brasileiro era composto pelos estados do Brasil e pelo Estado do Maranhão (Figura 2). Em 1718, a capitania do Piauí foi anexada ao Estado do Maranhão, e a capitania do Ceará foi incorporada ao Estado do Brasil – desde então, o lado ocidental da Serra da Ibiapaba (ou as raízes, ou “fraldas” da serra, como apresentado por Ferreira em 1908) serviram como a divisa entre o Ceará e o Piauí, situando-se esta serra em território cearense (Gaspar, 2023).
O Piauí começou desde esse período colonial a requisitar terras do Ceará, iniciando com a solicitação de anexação da chamada “Missão da Ibiapaba”, habitada pelos indígenas da nação Tabajara. No ano de 1721, uma carta régia emitida pelo rei de Portugal, D. João V, estabeleceu que toda a Serra da Ibiapaba seria destinada à nação Tabajara, situada na capitania do Ceará, como resposta ao profundo sentimento de pertencimento dos indígenas ao Estado do Ceará (PGCE, 2023).
Após um período de anos, a então Província do Piauí reivindicou a administração da Freguesia de Amarração, que estava sob jurisdição do Ceará. A justificativa para tal pleito era a construção de um porto que impulsionaria o desenvolvimento da mencionada província. A efetivação dessa reivindicação ocorreu por meio do Decreto Imperial Nº. 3.012, datado de 1880, que resultou na permuta de dois territórios. Dessa forma, a Freguesia de Amarração, compreendendo os atuais municípios de Luís Correia e Cajueiro da Praia, passou para o domínio do Piauí, enquanto a Comarca de Príncipe Imperial, englobando os atuais municípios de Crateús e Independência, tornou-se parte do território cearense (GASPAR, 2023).
Segundo Gaspar (2023) e Medeiros e Lima (2022), o referido decreto delimitou exclusivamente a área dos dois territórios trocados, não estabeleceu a divisa integral entre o Ceará e o Piauí pelo divisor de águas da Serra da Ibiapaba, como alega o Estado do Piauí em sua petição ao STF. Assim, a Serra da Ibiapaba manteve-se integralmente sob o domínio do Ceará, uma vez que a divisa histórica entre as províncias correspondia ao sopé ocidental dessa serra.
Reporta-se, ainda, que diversos mapas históricos trazem a divisa entre os estados do Ceará e do Piauí como sendo o sopé ocidental da Serra da Ibiapaba (Medeiros e Lima, 2022). Como exemplos, apresentam-se o mapa da Capitania do Ceará do ano de 1800 (Figura 3), o mapa da Capitania do Piauí do ano de 1809 (Figura 4) e o mapa da Serra da Ibiapaba do ano de 1922 (Figura 5).
A Figura 5 mostra o Mapa da Serra da Ibiapaba na escala 1:650.000 e fornece uma visão detalhada da região. A demarcação da divisa entre o Ceará e o Piauí é nitidamente delineada como sendo as raízes ocidentais da Ibiapaba e proporciona uma representação visual clara da divisa entre os dois estados. Ademais, o mapa destaca características da infraestrutura e comunicação, como linhas telegráficas e estradas de rodagem, que frequentemente refletem o desenvolvimento e a administração do território. Indica ainda a precisa localização de cidades, vilas, povoações e lugarejos. Esses elementos indicam a ligação histórica e geográfica da região com o Ceará e consolida a base histórica e legal para a jurisdição do Estado sobre a Serra da Ibiapaba.
Assim, coloca-se que a tão ousada pretensão do Estado do Piauí, de reivindicar a Serra da Ibiapaba para si, está associada à análise equivocada de documentos históricos.
Mas a análise de mapas históricos por si só não é suficiente para definir divisas, pois os mapas históricos, apesar de representarem valiosas fontes de informação sobre a percepção e a representação do mundo pelas pessoas da época, não têm precisão. Os métodos cartográficos utilizados nessas eras podem variar consideravelmente em comparação com os padrões cartográficos modernos. Para questões legais e disputas territoriais contemporâneas, é imperativo recorrer a fontes de dados mais recentes, com técnicas de mapeamento mais precisas.
Nesse sentido, fui procurada por equipe do Governo do Estado do Ceará para realizar um mapeamento geomorfológico da Serra da Ibiapaba, com a perspectiva de encontrar no relevo e na geomorfologia elementos que pudessem auxiliar na análise do litígio, já que os documentos históricos indicam que a divisa entre os dois estados se faz pela raiz da serra. Para tanto, recorremos a técnicas cartográficas modernas e produtos de sensoriamento remoto, realizando a análise integrada dos dados cartográficos por meio de Sistema de Informações Geográficas (SIG).
Pautada em décadas de pesquisas sobre o relevo do Nordeste, pude elaborar a seguinte avaliação: o Planalto da Ibiapaba tem limites definidos pelos afloramentos do grupo geológico “Serra Grande”, que é parte integrante da bacia sedimentar do Parnaíba, estrutura rochosa sobre a qual a serra foi modelada.
A bacia do Parnaíba corresponde a uma bacia sedimentar intracratônica brasileira, localizada na região Nordeste ocidental. Ocupando uma área de 665.888 km², distribui-se pelos estados do Piauí, Maranhão, Pará, Tocantins, Bahia e Ceará (ALMEIDA et al. 2000). A coluna sedimentar da Bacia do Parnaíba é composta por três grupos geológicos, que são o Grupo Serra Grande, de idade siluriana (443 – 419 milhões de anos); o Grupo Canindé, de idade devoniano-carbonífera (419 – 298 milhões de anos); e o Grupo Balsas, de idade carbonífero-triássica (298 – 200 milhões de anos) (ANP, 2015). Esses grupos são subdivididos em várias formações geológicas. A Figura 6 ilustra a distribuição desses elementos geológicos.
O Grupo Serra Grande foi depositado a partir de 420 milhões de anos, e representa a base de um pacote sedimentar que tem cerca de 3.500 km de espessura. A sequência mais antiga da Bacia sedimentar do Parnaíba corresponde, assim, à unidade estratigráfica “Grupo Serra Grande”, caracterizado pela presença de rochas clásticas. É composto pelas formações Ipu (base), Jaicós e Tianguá (topo) (CPRM, 2020). As espessuras máximas, em subsuperfície, são: 200 metros na Formação Tianguá, 350 metros na Formação Ipu, e 360 metros na Formação Jaicós (GÓES e FEIJÓ, 1994).
O Grupo Serra Grande, embora seja o mais antigo e corresponda à base da bacia, aflora em superfície nas bordas e flancos leste, sudeste e nordeste (ver figura 6). Nesses segmentos, o Grupo Serra Grande apresenta grandes exposições, e demarca muito bem os atuais limites da bacia, mantidos por arenitos que formam chapadas e feições com terminação abrupta, do tipo cuestiforme (SANTOS e CARVALHO, 2004).
Assim, chama-se a atenção para o fato de que o Grupo Serra Grande, apesar de ser o fundo da bacia, aflora nas bordas, em função de processo inicial de evolução dessa estrutura, que produziu afundamento da parte central e soerguimento das bordas (figura 7).
Mas, além de aflorar na borda da bacia, o Grupo Serra Grande encontra-se em ressalto topográfico – efetivamente, ele representa um segmento elevado do relevo. Tal fato, de posição topograficamente elevada do Grupo Serra Grande, resulta de uma nova etapa da evolução da Bacia do Parnaíba, já bem mais recente (120 milhões de anos), associada com a divisão do Megacontinente Pangea (Matos, 2000; Claudino-Sales, 2002; Nance e Murphy, 2013; Claudino-Sales, 2016, 2020).
Com efeito, o Pangea passou por divisão na região do Nordeste brasileiro entre 120 e 100 milhões de anos atrás, através de processos de extensão do tipo rifteamento, seguido pela abertura do Oceano Atlântico. O processo de rifteamento representou um esforço geológico de grandes proporções que abriu fossas tectônicas (rifts) no interior do continente, enquanto as áreas laterais foram soerguidas (Peulvast e Claudino-Sales, 2004). Esse soerguimento criou o Planalto da Borborema, a leste, e os relevos elevados do Estado do Ceará, a oeste (Claudino-Sales, 2002; Peulvast e Claudino-Sales, 2004; Peulvast et al, 2008) (Figura 8).
O soerguimento dos terrenos cristalinos do Estado do Ceará soergueu também, de forma solidária, a borda da bacia do Parnaíba, formada pelo Grupo Serra Grande (Peulvast e Claudino-Sales, 2004; Claudino-Sales e Peulvast, 2007; Peulvast et al., 2008; Peulvast e Betard, 2021, 2015). Esse soerguimento foi responsável pela formação de um relevo elevado, o denominado Planalto da Ibiapaba (ver figura 7), que evoluiu na sequência por meio de erosão, processo responsável pelas suas formas atuais. Nesse sentido, coloca-se que os limites do Planalto da Ibiapaba coincidem com os limites dos afloramentos em superfície do Grupo Serra Grande, tanto a leste (no Estado do Ceará), quanto a oeste (no Estado do Piauí).
O mapeamento geomorfológico que realizamos do Grupo Serra Grande demonstra que ele se situa no contato com o embasamento cristalino no Ceará, e no contato com outras formações da Bacia do Parnaíba no Piauí. Esse contato ocidental avança cerca de 40 quilômetros dentro do Estado do Piauí. Assim, ao contrário da narrativa piauiense, na verdade ocorreu um avanço territorial histórico do Piauí sobre terras cearenses (Figura 9).
A extensão do Grupo Serra Grande, que coincide com o Planalto da Ibiapaba, dessa forma, está longe de coincidir com o limite de definição da divisa entre os dois estados como vem propondo o Piauí, e que definiria quase toda a Ibiapaba para esse Estado.
Em síntese: o grupo técnico do Governo do Estado do Ceará levantou que, desde o período colonial, fundamenta-se o sopé ocidental da Serra da Ibiapaba como divisa natural. O mapeamento geológico-geomorfológico realizado demonstra que o grupo rochoso “Serra Grande’ representa esse sopé ocidental, o qual penetra por mais de 40 km no território do Piauí.
O Ceará, no entanto, não está reivindicando esse território, mas tão somente a linha que o IBGE definiu desde o censo de 2000, que corresponde à área litigiosa de 3.000 km2 atualmente em disputa. O bloco-diagrama a seguir explica visualmente essa situação (Figura 10).
Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE) e Comitê de Estudos de Limites e Divisas Territoriais do Ceará (CELDITEC) indicou que a quase totalidade da população da área de litígio tem sentimento de pertencimento associado ao Ceará. Esse fato necessita ser levado em conta pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pois não se pode, parece-nos, por estratégias geopolíticas estranhas à vida nacional, negar à população o direito de escolher a qual jurisdição administrativa ela para sempre se vinculará.
Assim, a análise de documentos históricos, associada com a análise geomorfológica da região, e como pautado pela postura e sentimento da população, comprova um dado cristalino: a Ibiapaba é cearense!
Referências
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