Em New Haven, americanos e estrangeiros se reúnem para se preparar para enfrentar as políticas de Trump
Imagem: Jamil Chade
Em New Haven, americanos e estrangeiros se reúnem para se preparar para enfrentar as políticas de Trum
Numa noite com a sensação térmica de 11 graus negativos em Connecticut, fui instruído na recepção da biblioteca pública de New Haven a ir ao subsolo. Era ali que aconteceria uma reunião com americanos de todas as origens e estrangeiros com o sonho americano. O motivo: ser informados sobre os riscos que cada um corria diante da iminente posse de Donald Trump e preparar uma resistência para defender o estado.
Ao procurar meu caminho pelas escadas, passei por um livro de colorir cuidadosamente colocado sobre uma das mesas. Na capa, personagens das diferentes etnias que formam parte da sociedade americana. Era um convite reducionista às crianças para que escolhessem a cor que cada um teria? E os brancos, seriam eles a metáfora do poder, como diria James Baldwin?
Finalmente cheguei até a reunião, que ocorria atrás da última prateleira de livros, na seção de "não-ficção". À medida que a conversa se desenrolava, porém, ela parecia fazer parte de um obra imaginária, incapaz de ocorrer no país que insiste em exportar a democracia e a liberdade, sempre que lhe convém.
Trump assume a presidência na segunda-feira e, ao longo dos meses, prometeu perseguir os "inimigos internos", atacou minorias e indicou que irá reverter políticas de diversidade. Anunciou a maior deportação da história e a retirada de direitos de mulheres sobre seu corpo. Ele ainda sinalizou que vai perdoar os invasores do Capitólio e não descartou ser "ditador por um dia".
Nas mais de duas horas daquele encontro, cerca de 50 pessoas seriam informadas sobre como agir, a quem recorrer, quais telefones acionar e o que dizer para as forças de ordem em caso de abuso. A instituição de direitos civis que organizava o encontro - a ACLU - ainda explicou como estava se preparando para defender o acesso à justiça reprodutiva, direito ao protesto e a situação de imigrantes.
Por todo o país, igrejas, escolas e centro comunitários proliferam encontros como esse para montar planos de resistência. Não querem repetir a experiência de 2017, quando foram pegos de surpresa pelas ações de Trump. Mas sabem que, desta vez, a extrema direita também desembarca mais organizada, mais poderosa e mais furiosa.
Nos rostos de cada um naquela sala, a imagem era a da tensão. Ali estavam moradores da cidade, ativistas, professores, afroamericanos, casais homossexuais, imigrantes e estudantes .
No fundo da sala, claros sinais de que o negacionismo não havia sido convidado: máscaras, gel e instruções sobre o que fazer com o lixo para ser reciclado ao final do encontro. Não faltavam ainda bolas contra estresse, distribuídas aos participantes. "Leve uma. Vão ser muito necessárias nos próximos meses", me disse a senhora que organizava a lista de presença.
Quando um senhor se aproximou perguntando o que era o evento, um dos organizadores explicou: "Vamos falar dos perigos que teremos de enfrentar a partir de segunda-feira".
Ao apresentar o programa da noite, os anfitriões não esconderam o que estava por trás daqueles semblantes preocupados. "Serão dias difíceis, principalmente os primeiros 60 ou 90 dias. Vamos viver a ameaça de uma hostilidade por parte do governo. Vamos precisar nos ajudar mutuamente, vamos precisar nos apresentar, seja para defender pessoas do movimento LGBT ou imigrantes", disse um deles.
O pedido, porém, era para que as pessoas "não entrem em pânico". "Há um sentimento de desespero e sabemos que há muita gente com medo. Mas vamos precisar de todos", insistiu Bethany Perryman, uma das coordenadoras do evento.
Antes de explicar de forma didática os direitos e mecanismos de proteção de cada um dos grupos, advogadas e conselheiras fizeram uma sugestão aos participantes: que escrevessem numa folha de papel quais valores regiam suas vidas. "Coloque isso na porta da sua geladeira", propôs Perryman.
Ao meu lado, uma senhora sussurrava a outra. "Não podemos nos esquecer de quem somos". Eu me perguntei, em silêncio: quem são eles?.
Mas os termos usados para designar o próximo governo refletiam o mal-estar no grupo e a percepção de que a democracia americana vivia mesmo uma encruzilhada. Uma das palestras citou a "ameaça de uma tirania", recomendando até mesmo livros sobre o autoritarismo.
A base do argumento não era a legitimidade do voto ou da vitória de Trump. Mas seus planos de desmontar direitos fundamentais e conquistas dos movimentos cívicos nos EUA nas últimas décadas.
Ilha progressista, o estado de Connecticut garante o direito ao aborto. O risco, porém, é que isso seja dificultado na prática, com intimidações e processos judiciais. O temor é ainda de que grupos de extrema direita consigam as informações médicas de pacientes de clínicas privadas ou de seguros. A recomendação, portanto, era para que cada mulher estudasse as cláusulas de cada contrato assinado e que tivesse cautela ao clicar em sites com seus dados médicos. Mas também que, se necessário, recorressem imediatamente a um apoio legal
Jess Zaccagnino, especialista em litígios, revelou ainda que um grupo de ativistas iniciará uma ação para garantir que o direito ao aborto esteja na Constituição do estado, evitando que retrocessos possam ser facilmente instaurados.
A situação da população LGBTQI+ também foi destacada. "Sabemos que esse grupo estará na mira do próximo governo", alertou Perryman. Mais uma vez, eram os vazamentos de dados confidenciais de saúde que preocupavam. Na plateia, casais se abraçavam, como se estivessem se protegendo.
Central ainda no debate foi a questão migratória. Para o grupo, haverá um esforço das novas autoridades para "desumanizar" os estrangeiros. "Estamos prevendo operações nos locais de trabalho, escolas e residências", lamentou Perryman.
Nesse caso, a sessão de orientação focou em dois aspectos.
O primeiro deles era direcionado aos estrangeiros. O conselho era para que ninguém abra a porta para a polícia e que um mandado de prisão só pode existir com a assinatura de um juiz. Uma dica: se o nome do estrangeiro for soletrado de forma errada, ele pode rejeitar. "Vocês têm direito a ficar em silêncio e o direito a um advogado", lembrou uma advogada.
Christopher, um equatoriano que atua na conscientização dos imigrantes, contou que muitos dos jovens estrangeiros estão preocupados sobre o que ocorrerá quando eles terminem o colegial. "Há muito medo", disse. Com a retórica anti-imigração da liderança política, comunidades de estrangeiros redescobriram o que era ser chamado por insultos que pareciam fazer parte do passado.
Ele percorre os bairros de imigrantes distribuindo cartões com as recomendações legais para que os estrangeiros saibam o que fazer. Muitos deles são classificados como "latinos", ainda que a língua materna seja o inglês e que nunca tenham cruzado a cicatriz formada na fronteira sul do país, também chamado de muro.
Além disso, sua equipe se reúne com o chefe da polícia para insistir sobre o direito de cada um, assim como diretores de escolas.
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