Elia analisa a cultura do cancelamento e alerta: “É o gozo de ver o outro ser destruído, não o desejo de justiça”
“A psicanálise nos ensina que nós não somos bons por natureza. Existe em nós uma dimensão de mal radical. E é a partir dessa sombra que cancelamos”, afirmou Elia logo no início da conversa. Para ele, o cancelamento é um ato que nasce da rejeição profunda de algo que, de forma inconsciente, nos toca e nos mobiliza. “Não se cancela qualquer coisa. Cancela-se aquilo que nos diz respeito. É um movimento íntimo, embora se manifeste publicamente como condenação coletiva”, explicou.
A crítica central do psicanalista recai sobre a violência simbólica presente no ato de cancelar. Ele utiliza o conceito freudiano de Verwerfung, frequentemente traduzido como rejeição, mas que expressa a ideia de uma expulsão radical do campo simbólico. “Não é uma simples rejeição afetiva. É o desejo de ejetar, lançar para fora, negar ao outro até mesmo a dignidade de existir simbolicamente”, destacou.
Luciano apontou ainda o componente de gozo envolvido na prática. Mais do que prazer, trata-se de uma satisfação pulsional em ver o outro humilhado, excluído, eliminado do espaço social. “O cancelamento é gozo. É o gozo de não suportar o gozo do outro. E isso nos aproxima de um funcionamento autoritário, fascista. Não há debate, não há escuta, só há execução moral”, disse. A seu ver, cancelar não é o mesmo que responsabilizar. Ao contrário: impede qualquer possibilidade de responsabilização ou transformação. “Cancelar não é responsabilizar, é aniquilar”, afirmou.
Ao longo da conversa, foram mencionados casos recentes de cancelamentos — como os que atingiram o ex-ministro Silvio Almeida, o jurista português Boaventura de Sousa Santos e o professor Alysson Mascaro —, todos eles nomes ligados à esquerda e ao pensamento crítico. Foram lembrados também os ataques históricos sofridos por Lula e Dilma Rousseff, episódios que, segundo Luciano, foram os precursores do que viria a se tornar uma cultura do cancelamento estrutural. “O grande crime de Lula foi ter ocupado um lugar que a elite não aceita que ele ocupe. Ele foi cancelado por existir onde não deveria, na lógica perversa da classe dominante”, comentou.
O programa tratou ainda das armadilhas discursivas que se instauram quando o medo de ser cancelado passa a pautar o que se pode ou não dizer. Para Luciano, esse receio é real e produz autocensura. “Mas não podemos deixar de falar por medo. O silêncio imposto é a outra face do autoritarismo”, alertou. A jornalista questionou o impacto das redes sociais nesse processo, observando como elas instrumentalizam o poder de censura por meio de pequenos atos de patrulhamento. “As redes oferecem a fantasia de um poder, de exercer controle sobre o discurso do outro. É o patrulhamento transformado em espetáculo”, analisou o psicanalista.
A conversa terminou com um apelo à escuta e ao debate. “Responsabilizar alguém não é destruí-lo. É incluí-lo no campo do simbólico, dar a ele a chance de se implicar, de se transformar. E isso só é possível pela via do diálogo, da palavra”, afirmou Luciano Elia. Para ele, o verdadeiro desafio não está em punir, mas em abrir espaço para que temas como machismo, racismo, assédio e abuso de poder sejam enfrentados de forma crítica, e não convertidos em linchamentos morais.
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