Ferraço: ‘A PF foi até o hotel, me contactou no aeroporto e apareceu lá com o senador Roger Pinto’
Foi
cinematográfico o enredo da fuga do senador boliviano Roger Pinto para o
Brasil. Depois de 455 dias de refúgio forçado numa sala da embaixada
brasileira em La Paz, o líder da oposição ao governo de Evo Morales
dormiu em Brasília na madrugada de sábado para domingo. Ele deve sua
liberdade a uma operação secreta que reuniu, à revelia do Itamaraty, um
diplomata brasileiro inconformado, dois fuzileiros da Marinha, um
senador do PMDB, e uma equipe de cinco agentes da Polícia Federal.
Chama-se
Ricardo Ferraço (PMDB-ES) o senador que participou da execução da fuga.
Ele preside a Comissão de Relações Exteriores do Senado. Entrou na
operação a pedido do diplomata Eduardo Saboia, encarregado de negócios e
titular interino da representação diplomática brasileira em La Paz.
Acionado em Vitória, onde se encontrava no sábado, Ferraço voou até
Corumbá (MS) para resgatar, num jato emprestado, o desafeto de Evo
Morales.
Abordado por um agente da Polícia Federal no aeroporto de
Cuiabá, Ferraço identificou-se. Escondido num hotel, na companhia do
diplomata Saboia, o senador boliviano chegaria uma hora depois,
protegido por cinco agentes da PF e um par de fuzileiros navais que o
haviam escoltado por 22 horas, numa viagem de 1.500 km, feita em carro
diplomático brasileiro. Roger Pinto voou para a liberdade na companhia
de Ferraço.
Em entrevista ao blog, Ricardo Ferraço contou detalhes
da operação que levou o Itamaraty a abrir uma investigação e irritou o
governo boliviano. A conversa vai reproduzida abaixo:
— Como se interessou pelo caso do senador boliviano Roger Pinto?
Em março, eu fui à Bolívia para averiguar a situação dos torcedores do
Corinthians que estavam presos na cidade de Oruro. Na volta, fiz uma
visita ao senador Roger. Encontrei-o numa sala do segundo andar do
prédio administrativo da embaixada brasileira, em La Paz. Improvisaram
um quarto num escritório. Mede uns 3m X 6m. Fuzileiros da Marinha
guardavam a porta. Fiquei impressionado com aquela situação. De lá para
cá, venho agendando no Senado. Nada evoluiu.
— O sr. se manteve em contato com a embaixada brasileira em La Paz? Sim.
Tem lá um diplomata, encarregado de negócios, chamado Eduardo Saboia. A
embaixada está sem embaixador há muito tempo. É ele quem está
respondendo pelo posto. Ele notou uma deterioração do estado de saúde do
senador boliviano. Havia um quadro de depressão. Vendo tudo isso, e
percebendo a ausência de perspectiva de solução para o caso, o Saboia
chegou a me confidenciar, de maneira muito pessoal, que estava com medo
de que o senador boliviano se suicidasse. Ele me disse que estava
pensando em tirar o senador de lá.
— Qual foi a sua reação? O
que eu fiz foi entusiasmá-lo a tomar uma decisão. Fiz isso por
solidariedade humana. Eu só vi o senador Roger Pinto duas vezes. Em
março, quando estive em La Paz, e neste sábado.
— O diplomata Eduardo Saboia autorizou a fuga?
Ele fez muito mais do que isso. O Saboia organizou a saída, colocou o
Roger no carro da embaixada e trouxe ele até o Brasil. Os fuzileiros
navais brasileiros deram cobertura durante todo o percurso. Percorreram
um caminho complicado. Foram mais de 1.500 km, passando por regiões com
produção de coca, até chegarem a Corumbá, no Mato Grosso do Sul. O
Saboia foi a figura central no episódio.
— O sr. foi comunicado da operação com antecedência? A
gente vinha conversando, trocando ideias. Mas, quando eu soube, a
operaçao já estava em curso. Quando o Saboia me ligou, eles já estavam
próximos da fronteira. Estava muito tenso. Ele criou uma relação de
confiança comigo desde que o conheci, em março, na Bolívia. Eu dava
retorno a ele. Esteve no Brasil duas vezes. E foi recebido por mim na
Comissão de Direitos Humanos. Coloquei o assunto na agenda da comissão.
— Qual foi o seu papel na operação de fuga? Eu
vinha acompanhando o processo, toda a angústia do Saboia. Neste sábado,
eu estava em Vitória [ES], na minha casa, quando recebi um telefonema
dele, pedindo ajuda.
— Que hora foi isso? Era hora do almoço.
— O que o sr. fez? Tentei contactar autoridades brasileiras.
— Que autoridades? Na verdade, liguei para o presidente do Senado [Renan Calheiros]. Mas não consegui falar. Deixei recado.
— E daí? Telefonei
para o aeroporto de Vitória. Tinha um jato privado, de uma empresa
capixaba. Liguei para o dono. Não dei detalhes, não queria que vazasse.
Mas esclareci que precisava do avião para uma missão importante. Que
envolvia uma pessoa correndo risco de vida. Ele se sensibilizou e me
emprestou o avião.
— Como se chama o empresário? Prefiro não dizer, até porque ele não sabia exatamente do que se tratava. A responsabilidade é minha.
— Ele cedeu o avião graciosamente, sem cobrar? Sim, isso mesmo.
— É seu amigo? É
conhecido meu, mas não é pessoa íntima. Decidi pedir. Se não desse,
paciência. Não sou pessoa de me omitir. A omissão é o pior dos pecados.
— A que horas decolou de Vitória? Levantamos
voo pouco antes das seis da tarde, umas cinco e meia. Desci em Corumbá à
noite. O aeroporto estava meio vazio, sem muito movimento. Fiquei
esperando umas duas ou três horas. Logo fui abordado por um agente da
Polícia Federal. Eu me identifiquei, dei meus documentos. O cara ligou
para o superior dele. Dali a mais ou menos uma hora, chegou o agente com
o senador boliviano. Me entregou ele. Embarcamos para Brasília.
Chegamos na cidade perto de uma e meia da madrugada.
— A Polícia Federal foi buscar o senador boliviano do outro lado da fronteira? Não.
Quando ele chegou ao Brasil, na fronteira, estava acompanhado do
diplomata brasileiro e escoltado por dois fuzileiros navais do Brasil.
Os fuzileiros o atravessaram na fronteira. A Polícia Federal foi
procurá-los no hotel.
— Então, eles chegaram a se hospedar num hotel em Corumbá? Sim, chegaram na cidade por volta de duas horas da tarde de sábado. E foram para o hotel. O Saboia me ligou do hotel.
— Quem acionou a Polícia Federal foi o diplomata Eduardo Saboia? Não sei dizer. Sei que a PF foi até o hotel, me contactou no aeroporto e apareceu lá com o senador Roger Pinto.
— A Polícia Federal foi acionada por alguém, não?
Eu não tenho esse detalhe. Sei que o Saboia estava tentando fazer
contato com o ministro Celso Amorim [Defesa], com o José Eduardo Cardozo
[Justiça]. Não sei se conseguiu. Foi tudo muito rápido. Não deu para
perguntar tudo.
— Acredita que ele tenha dado ciência da movimentação ao Itamaraty?
Não acho improvável que ele tenha sinalizado alguma coisa. Como ele
está respondendo pela embaixada há meses, não é nenhum absurdo supor que
ele tenha manifestado aos seus superiores que a situação estava no
limite, e que, se ele tivesse oportunidade, faria alguma coisa. Talvez
as pessoas no Brasil não acreditassem que ele tivesse disposição para
fazer.
— Quando o senador Roger Pinto chegou no aeroporto de Corumbá, estava acompanhado de grande aparato de segurança? Umas
sete pessoas davam segurança a ele. Cinco agentes da Polícia Federal,
bem armados, e os dois fuzilileiros navais que o haviam acompanhado
desde La Paz.
— O Eduardo Saboia não foi ao aeroporto? Não. Eu insisti muito para que ele voasse com a gente até Brasília. Mas ele preferiu não nos acompanhar.
— Ele decerto está ciente de que pode sofrer sanções administrativas, não?
Obviamente, ele não ignora os riscos. Mas acho que deveria ser
condecorado, jamais punido. Tomou uma decisão corajosa. Ao viajar junto
com o senador, pôs inclusive a própria vida em risco. Conversamos muito.
Sei que ele fez isso por não suportar a indeferença de ver um
perseguido político se deteriorando numa sala, como se fosse um resto de
gente. Era essa a situação do senador na Bolívia.
— Pelo que conversavam, o Eduardo Saboia planejava essa operação há muito tempo?
Ele revelava, há algum tempo, muito incômodo com a falta de definição e
de determinação do governo brasileiro, em função de ter concedido o
asilo político e não ter obtido o salvo-conduto para o deslocamento do
asilado. O Saboia é uma figura muito comprometida com os direitos
humanos. É um homem muito sério. O que o moveu foi a indignação.
— Na sua opinião, o governo brasileiro se portou mal no episódio? Não
há nenhuma dúvida a esse respeito. Sou um crítico da falta de
determinação da diplomacia brasileira nesse caso. Nossa diplomacia por
vezes é muito companheira dos nossos vizinhos bolivarianos. Há um nítido
viés ideológico nas relações. Acho um absurdo que o governo brasileiro,
após conceder o asilo ao senador, não tenha se empenhado para obter o
salvo-conduto.
— Na sua avaliação, faltou pressionar a Bolívia? O
salvo-conduto é uma consequência natural do asilo político, que por sua
vez é uma decisão unilateral do país que concede. Mesmo nos momentos
mais duros das ditaduras sulamericanas, como a do Chile, nunca um
salvo-conduto para o Brasil foi negado. O governo brasileiro deveria ter
exigido da Bolívia o salvo-conduto. No mês passado, em encontro de
cúpula do Mercosul, no Uruguai, os chefes de Estado do grupo aprovaram
uma nota concluindo que o asilo é decisão soberana dos países.
Referiam-se ao caso do Edward Snowden [ex-técnico terceirizado da CIA].
Entre os signatários está o Evo Morales. Por que as regras do asilo
valem para o Snowden e não valeriam para o senador Roger? Não faz o
menor sentido.
— Depois do desembarque em Brasília, o senador boliviano foi para um hotel?
Chegamos à Capital na madrugada de sábado para domingo. Eu tinha
oferecido minha casa para ele pernoitar. Ele tinha topado. Mas, no meio
do caminho, falou com o advogado dele. E preferiu ir para a casa desse
advogado.
— Então, ele tem um advogado em Brasília? Sim. Chama-se Fernando Tibúrcio. Peticionou em nome dele junto ao STF, pedindo providências ao governo brasileiro.
—
O senador Roger Pinto responde a mais de 20 processo na Bolívia. É
acusado de corrupção. Está seguro de que as acusações são falsas?
Confio muito na avaliação do Eduardo Saboia. No caso dos torcedores
corintianos, já libertados, ele tinha me dito que nenhum deles tinha
envolvimento com a morte daquela menino boliviano, no estádio de Ururo. E
o Saboia me passa a mesma segurança em relação ao caso do senador
Roger. Ele está muito seguro, pelos dados que obteve, de que o senador é
perseguido pelo governo do Evo Morales. Diz que as acusações que pesam
contra ele fruto de disputa política. Ele é o líder da oposição. Não o
conheço em profundidade. Mas pergunto: se ele fosse um criminoso, o
governo brasileiro teria concedido o asilo político?
— Sobre o quê o sr. e o senador boliviano conversaram durante o voo de Corumbá até Brasília?
Ele me pareceu em estado de choque. A ficha ainda não havia caído. Ele
parecia ainda não acreditar na possibilidade de ser um homem livre. Me
disse que contou os dias em que ficou retido numa sala. Foram 455 dias.
Na cabeça dele, a estratégia do governo da Bolívia era vencê-lo pelo
cansaço. Esperavam que ele não aguentasse e saísse à rua, para ser
preso. É um homem de família, Batista, conservador. Sabe que terá de
refazer a vida.
— O senador Renan Calheiros respondeu ao recado que o sr. deixara no sábado? Ele me ligou no domingo, quando tudo já estava resolvido. Contei rapidamente o que se passou. E ficou nisso.
— Não receia ser criticado por sua participação na fuga? De
jeito nenhum. Não convivo muito bem com a omissão. Prefiro o erro à
indiferença. E não creio ter cometido nenhum erro nesse episódio.
Deu no josias.