Carta aberta de Aragão a Dallagnol: “baixe a bola, colega”
Do
blog do Marcelo Auler,
a carta aberta do Procurador da República Eugênio Aragão ao chefe da
Força Tarefa da Lava Jato, que aplaudiu, nos jornais, o acordo entre a
Odebrecht e o governo dos EUA, dizendo que quem se opõe aos métodos da
Lava Jato tem “complexo de vira-latas”:
Nada é mais difícil e nada exige mais caráter que se encontrar em
aberta oposição a seu tempo e dizer em alto e bom som: Não! (Kurt
Tucholsky)
Acabo de ler por blogs de gente séria que você estaria a chamar
atenção, no seu perfil de Facebook, de quem “veste a camisa do complexo
de vira-lata”, de que seria “possível um Brasil diferente” e de que a
hora seria agora. Achei oportuno escrever-lhe está carta pública, para
que nossa sociedade saiba que, no ministério público, há quem não bata
palmas para suas exibições de falta de modéstia. Vamos falar primeiro do
complexo de vira-lata. Acredito que você e sua turma são talvez os que
têm menos autoridade para falar disso, pois seus pronunciamentos têm
sido a prova mais cabal de SEU complexo de vira-lata. Ainda me lembro
daquela pitoresca comparação entre a colonização americana e a lusitana
em nossas terras, atribuindo à última todos os males da baixa cultura de
governação brasileira, enquanto o puritanismo lá no norte seria a razão
de seu progresso.
” E olha que quem cresceu nas “Oropas” e lá foi educado desde menino fui eu”
Talvez
você devesse estudar um pouco mais de história, para depreciar menos
este País. E olha que quem cresceu nas “Oropas” e lá foi educado desde
menino fui eu, hein… talvez por isso não falo essa barbaridade, porque
tenho consciência de que aquele pedaço de terra, assim como a de seu
querido irmão do norte, foram os mais banhados por sangue humano ao
longo da passagem de nossa espécie por este planeta. Não somos, os
brasileiros, tão maus assim, na pior das hipóteses somos iguais, alguns
somos descendentes dos algozes e a maioria somos descendentes das
vítimas.
Mas essa sua teorização de baixo calão não diz tudo sobre SEU
complexo. Você à frente de sua turma vão entrar na história como quem
contribuiu decisivamente para o atraso econômico e político que
fatalmente se abaterão sobre nós. E sabem por que? Porque são ignorantes
e não conseguem enxergar que o princípio fiat iustitia et pereat mundus
nunca foi aceita por sociedade sadia qualquer neste mundão de Deus.
Summum jus, summa iniuria, já diziam os romanos: querer impor sua
concepção pessoal de justiça a ferro e fogo leva fatalmente à
destruição, à comoção e à própria injustiça.
E o que vocês conseguiram de útil neste País para acharem que podem
inaugurar um “outro Brasil”, que seja, quiçá, melhor do que o em que
vivíamos? Vocês conseguiram agradar ao irmão do norte que faturará
bilhões de nossa combalida economia e conseguiram tirar do mercado
global altamente competitivo da construção civil de grandes obras de
infraestrutura as empresas nacionais. Tio Sam agradece. E vocês,
Narcisos, se acham lindinhos por causa disso, né?
Vangloriam-se de terem trazido de volta míseros dois bilhões em
recursos supostamente desviados por práticas empresariais e políticas
corruptas. E qual o estrago que provocaram para lograr essa casquinha?
Por baixo, um prejuízo de 100 bilhões e mais de um milhão de empregos
riscados do mapa. Afundaram nosso esforço de propiciar conteúdo
tecnológico nacional na extração petrolífera, derreteram a recém
reconstruída indústria naval brasileira.
Claro, não são seus empregos que correm riscos. Nós ganhamos muito
bem no ministério público, temos auxílio-alimentação de quase mil reais,
auxilio-creche com valor perto disso, um ilegal auxílio-moradia
tolerado pela morosidade do judiciário que vocês tanto criticam. Temos
um fantástico plano de saúde e nossos filhos podem frequentar a liga das
melhores escolas do País. Não precisamos de SUS, não precisamos de
Pronatec, não precisamos de cota nas universidades, não precisamos de
bolsa-família e não precisamos de Minha Casa Minha Vida. Vivemos numa
redoma de bem estar. Por isso, talvez, à falta de consciência histórica,
a ideologia de classe devora sua autocrítica.
“você e sua turma não acham nada de mais milhões de famílias não
conseguirem mais pagar suas contas no fim do mês, porque suas mães e
seus pais ficaram desempregados”
E você e sua turma não acham nada de
mais milhões de famílias não conseguirem mais pagar suas contas no fim
do mês, porque suas mães e seus pais ficaram desempregados e perderam a
perspectiva de se reinserirem no mercado num futuro próximo. Mas você
achou fantástico o acordo com os governos dos EEUU e da Suíça, que
permitiu-lhes, na contramão da prática diplomática brasileira, se
beneficiarem indiretamente com um asset sharing sobre produto de
corrupção de funcionários brasileiros e estrangeiros. Fecharam esse
acordo sem qualquer participação da União, que é quem, em última
análise, paga a conta de seu pretenso heroísmo global e repassaram
recursos nacionais sem autorização do Senado. Bonito, hein?
Mas, claro, na visão umbilical corporativista de vocês, o ministério
público pode tudo e não precisa se preocupar com esses detalhes
burocráticos que só atrasam nosso salamaleque para o irmão do norte! E
depois fala de complexo de vira-lata dos outros!
O problema da soberba, colega, é que ela cega e torna o soberbo
incapaz de empatia, mas, como neste mundo vale a lei do retorno, o
soberbo também não recebe empatia, pois seu semblante fica opaco,
incapaz de se conectar com o outro.
A operação de entrega de ativos nacionais ao estrangeiro, além de
beirar alta traição, esculhambou o Brasil como nação de respeito entre
seus pares. Ficamos a anos-luz de distância da admiração que tínhamos
mundo afora. E vocês o fizeram atropelando a constituição, que prevê que
compete à Presidenta da República manter relações com estados
estrangeiros e não ao musculoso ministério público. Daqui a pouco vocês
vão querer até ter representação diplomática nas capitais do circuito
Elizabeth Arden, não é?
Ainda quanto a um Brasil diferente, devo-lhes lembrar que “diferente”
nem sempre é melhor e que esse servicinho de vocês foi responsável por
derrubar uma Presidenta constitucional honesta e colocar em seu lugar
uma turba envolvida nas negociatas que vocês apregoam mídia afora. Esse é
o Brasil diferente? De fato é: um Brasil que passou a desrespeitar as
escolhas políticas de seus vizinhos e a cultivar uma diplomacia da
nulidade, pois não goza de qualquer respeito no mundo. Vocês ajudaram a
sujar o nome do País. Vocês ajudaram a deteriorar a qualidade da
governação, a destruição das políticas inclusivas e o desenvolvimento
sustentável pela expansão de nossa infraestrutura com tecnologia
própria.
E isso tudo em nome de um “combate” obsessivo à corrupção. Assunto do
qual vocês parecem não entender bulhufas! Criaram, isto sim, uma
cortina de fumaça sobre o verdadeiro problema deste Pais, que é a
profunda desigualdade social e econômica.
Não é a corrupção. Esta é mero corolário da desigualdade, que produz
gente que nem vocês, cheios de “selfrighteousness” (justiça própria), de
pretensão de serem justos e infalíveis, donos da verdade e do bem
estar. Gente que pode se dar ao luxo de atropelar as leis sem
consequência nenhuma. Pelo contrário, ainda são aplaudidos como
justiceiros.
Com essa agenda menor da corrupção vocês ajudaram a dividir o País,
entre os homens de bem e os safados, porque vocês não se limitam a
julgar condutas como lhes compete, mas a julgar pessoas, quando estão
longe de serem melhores do que elas. Vocês não têm capacidade de ver o
quanto seu corporativismo é parte dessa corrupção, porque funciona sob a
mesma gramática do patrimonialismo: vocês querem um naco do estado só
para chamar de seu.
Ninguém os controla de verdade e vocês acham que não devem satisfação
a ninguém. E tudo isso lhes propicia um ganho material incrível, a
capacidade de estarem no topo da cadeia alimentar do serviço público.
Vamos falar de nós, os procuradores da república, antes de querer olhar
para a cauda alheia.
Por fim, só quero pontuar que a corrupção não se elimina. Ela é da
natureza perversa de uma sociedade em que a competição se faz pelo fator
custo-benefício, no sentindo mais xucro. A corrupção se controla.
Controla-se para não tornar o estado e a economia disfuncionais. Mas
esse controle não se faz com expiação de pecados. Não se faz com
discursinho falso-moralista. Não se faz com homilias em igrejas. Se faz
com reforma administrativa e reforma política, para atacar a causa do
fenômeno e não sua periferia aparente. Vocês estão fazendo populismo, ao
disseminarem a ideia de que há o “nós o povo” de honestos brasileiros,
dispostos a enfrentar o monstro da corrupção feito São Jorge que
enfrentou o dragão.
Você e eu sabemos que não existe isso e que não existe com sua
artificial iniciativa popular das “10 medidas” solução viável para o
problema. Esta passa pela revisão dos processos decisórios e de controle
na cadeia de comando administrativa e pela reestruturação de nosso
sistema político calcado em partidos que não merecem esse nome. Mas isso
tudo talvez seja muito complicado para você e sua turma compreenderem.
Só um conselho, colega: baixe a bola. Pare de perseguir o Lula e
fazer teatro com PowerPoint. Faça seu trabalho em silêncio, investigue
quem tiver que investigar sem alarde, respeite a presunção de inocência,
cumpra seu papel de fiscal da lei e não mexa nesse vespeiro da
demagogia, pois você vai acabar ferroado. Aos poucos, como sempre, as
máscaras caem e, ao final, se saberá que são os que gostam do Brasil e
os que apenas dele se servem para ficarem bonitos na fita! Esses, sim,
costumam padecer do complexo de vira-lata!
Um forte abraço de seu colega mais velho e com cabeça dura, que não
se deixa levar por essa onda de “combate” à corrupção sem regras de
engajamento e sem respeito aos costumes da guerra.